segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Exército do Brasil: Diogo Arouche de Moraes Lara


Diogo Arouche de Moraes Lara foi um dos mais distintos infante brasileiros, militar e literariamente, que nunca chegou a ver a independência do Brasil. A sua Memória da Campanha de 1816, escrita no acampamento do Quaraí em 1817 logo após os eventos, só seria publicada em 1844, por iniciativa do seu camarada Machado de Oliveira. Foi à estampa 25 anos após o seu autor cair em combate, tentando libertar S. Nicolau, à frente do regimento que comandava.

O tenente coronel Diogo Arouche de Moraes Lara nasceu em S. Paulo em 1789, filho do tenente general José Arouche de Toledo Rendon [na foto] e de D. Maria Thereza Rodrigues de Moraes. 

Vinha de uma família paulista com grande tradição castrense, sendo o seu avô o mestre de campo (ou coronel) Agostinho Delgado Arouche e seu bisavô o sargento mor Francisco Nabo Freire, nascido em Lagos.

Muito pouco é conhecido acerca da fase inicial da sua carreira militar, mas terá estudado matemáticas e, em 1802, com cerca de 13 anos, é nomeado tenente da companhia de caçadores do 2.º Regimento de Milícias de S. Paulo, pelo capitão general da província, António Manuel de Melo e Castro de Mendonça. 

O capitão general seguinte (António José Correia da Franca e Horta, 1753-1823) ainda não havia confirmado a promoção por volta de 1803, mas notou que o tenente servia “sem nota”.  Em Maio de 1803, é inclusive indicado numa nota o oficial que Diogo Arouche vai substituir, Joaquim Pedro Salgado que havia sido agregado em capitão para fora da província.

Legião de S. Paulo

Não é certo quando integra a Legião de Voluntários Reais (também conhecida por Legião de S. Paulo), mas tê-lo-á feito na artilharia, conforme sugere o seu camarada Machado de Oliveira (Oliveira era também capitão graduado na infantaria, mas mais moderno que Diogo Arouche), provavelmente entre 1804 e 1808, tendo-se deslocado para o Rio Grande. Terá passado, previamente a 1809, à infantaria; na Legião, a arma era constituída de 8 companhias em 2 batalhões. 



Certo é que, a 27 de Junho de 1809, é promovido a alferes de 4.ª Companhia do 1.º Batalhão de Infantaria da  Legião de Voluntários Reais, de sargento (não indica mais nada, pelo que poderemos aferir que era também de infantaria).

Não é certo de que forma se relaciona o facto de Diogo Arouche Moraes Lara ter sido tenente de milícias e depois, passado a uma unidade de linha, ou como sargento ou até assentado praça. Pode ter sido que a promoção não foi confirmada pelo novo capitão general, ou uma muito incomum despromoção de oficial, ainda que passando da 2.ª à 1.ª linha. A primeira possibilidade é a mais certa, pois não tenho conhecimento de nenhum caso semelhante na segunda senão por punição disciplinar (e ainda assim, para um jovem cavalheiro, a demissão era preferível).

Participa na campanha de 1811-1812. Machado de Oliveira indica que Moraes Lara, então ou alferes ou tenente serviu como parlamentário com grande distinção

A 13 de Maio de 1813, na promoção geral após a campanha, é promovido a ajudante do 1.º Batalhão de Infantaria da sua unidade. Ajudante era o assistente do sargento mor, em matéria administrativas e logísticas e estaria ao nível de tenente.

A Campanha de 1816

A 25 de Julho de 1814, é graduado em capitão de infantaria na Legião. Serviu como diretor do Arsenal de Porto Alegre, mas em 1816 retorna à Legião na área do Rio Pardo para servir na campanha iminente. 
Os dois cargos em que serve neste período são indicativos de uma forte competência em termos administrativos, seja como ajudante do major do seu batalhão, seja gerindo o arsenal da capital da província.

Com 27 anos, é capitão graduado de infantaria da Legião e participa da batalha de Catalán [saiba mais], onde segundo Machado de Oliveira, Moraes Lara comanda uma das partes da carga de infantaria na parte final da batalha que ajudou a derrotar o ataque principal oriental: 

[...] e posto enfim à frente de uma massa de infantaria penetrou o bosque, em que se entrincheirara uma grande parte da infantaria inimiga, e donde sustentava um fogo mortífero contra a espalda do acampamento, bateu denodamente esta força, e obrigou-a a aceder depois de vigorosa resistência, rendendo-se mais de 200 prisioneiros.”

Já no acampamento do Quaraí, em 1817, Diogo Arouche Moraes Lara escreve uma das mais importantes fontes dessa primeira fase do conflito, especialmente em Entre Rios e Missões. 
Os mapas que lhe vem anexos são preciosos croquis das batalhas de S. Borja, Arapéi e Catalán. 

Ainda que escrito em 1817, o manuscrito só em 1844 reemerge pelas mãos de José Joaquim Machado de Oliveira, que o transcreve e faz publicar na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), em 1845, assim como uma biografia de Diogo Arouche, a qual, pela sua proximidade ao oficial, dou mais valor, ainda que a mesma esteja longe de exata ou precisa.

A 22 de Janeiro de 1818, é promovido a Capitão efetivo, no comando da 1.ª Companhia do 1.º Batalhão da sua legião, o lugar de maior prestígio para um oficial da graduação dele. Já agora, o seu camarada e biógrafo Machado de Oliveira era o comandante da 1.ª Companhia do 2.º Batalhão.

Já próximo do final da guerra, por volta de 1818-1819, é promovido a tenente coronel, no comando do recém-criado Regimento de Milícias Guarani a Cavalo, de Missões, formado a partir das companhias de milícias a cavalo de Missões (8 de guaranis e 3 de brancos, originalmente), que vinham já de 1811.

Morre em combate, a 9 de Maio de 1819, com cerca de 30 anos. em S. Nicolau, no comando do seu regimento, ao tentar reocupar o aldeamento às forças orientais. Algumas fontes dão-no como não tendo ainda cumprido o seu 30.º aniversário, sendo que assim terá nascido entre Junho e Dezembro de 1789.

Memória(s) da Campanha de 1816

No manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [conheça aqui, abre nova janela], está ao início uma Advertência que, quando da publicação em 1845, foi omitido ou não existia no manuscrito usado por Machado de Oliveira. Seja como for, aqui a transcrevo, convidando também  ler a versão publicada na RIHGB, em 1845, que pode ser lida aqui:


Advertencia.
O Amor da Patria, e do meu Soberano me faz tomar o maior interesse por tudo quanto he util, e gloriozo para ambos. A Campanha d' 1816 feita pelas Tropas da Capitania do Rio Grande de S. Pedro do Sul, he pelas brilhantes acçoens militares nella havidas hũa das muitas que fundamentam a digna reputação das Armas Portuguesas, a Gloria Nacional, e a de El Rey D. João 6.º. E dezejando conservar a memoria de tão brilhantes acçoens, assim como os respeitaveis nomes de tantos heróes, q nella fizerão-se remarcaveis, me propuz a escrevêla; e puz em pratica o meu dezejo, prevalecendo o Patriotismo às dificuldades, que me apresentavão as faltas de talentos, e dos conhecimentos precizos de todas as particularidades, que as partes officiaes das mesmas acçoens militares não mencionão, e que exigião pennoza investigação para alcansallas, muito principalmente em meio dos tumultos de hũa guerra activa. Escrevi pois como pude, e expuz os factos taes, e quaes conheci, sem me poupar ao trabalho de investigar a verdade; ficando-me sempre o pezar de o não poder fazer com aquela elegancia, que meresse tão grave assumpto: estimarei porem, que hũa pena digna delle, podendo-se aproveitar da noticia que dou daquelles acontecimentos, os descreva de maneira, que se eternizem os nomes dos meos honrados Patriotas, que trabalhárão com distinção naquella memoravel Campanha, e chegue ao conhecimento das geraçoens vindouras a prezente gloria do meu Rey, e da minha Patria. 
O Autor

Não existe, tanto quanto sei, um retrato de Moraes Lara, o que muito completaria a ideia de quem foi o militar, sempre muito baça pelas lentes do tempo.

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Imagem de topo
- Várzea do Carmo (Arnaud Pallière). fonte: Wikicommons. São Paulo, 1821.

Fontes
- Gazeta do Rio de Janeiro
LARA, Diogo Arouche de Moraes – Memória da Campanha de 1816, in Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, Tomo VII, n.º 26 – Julho de 1845, p.: 123 a 170, terceira edição, Rio de Janeiro ; imprensa Nacional, 1931, p.: 123 a 170.
- ------------ - Apêndice à Memória da Campanha de 1816, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo VII, n.º 27 – outubro de 1845, p.: 263 a 317, terceira edição, Rio de Janeiro ; imprensa Nacional, 1931, p.: 363 a 317.
- OLIVEIRA, José Joaquim Machado de, Breve Noticia Biographica sobre o Auctor da Memoria da Campanha de Artigas, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo VII, n.º 27 – outubro de 1845, terceira edição, Rio de Janeiro ; imprensa Nacional, 1931, pp. 256-262.

- BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento, Dicionario Bibliographico Brazileiro, v. 2,Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. pp. 175-176
- BOEIRA, Luciana Fernandes, Como Salvar do Esquecimento os Atos Bravos do Passado Rio-Grandense: A Província de São Pedro Como um Problema Político-Historiográfico no Brasil Imperial (Tese de doutoramento), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013pp. 162-163
- CEZAR, Adilson, "Elogio de Adilson Cezar a seu patrono Ten Cel Diogo Arouche de Morais Lara". in: O Guararapes, Órgão de Divulgação das Atividades da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, Aditamento ao N.º 42, Julho e Setembro 2004, http://www.ahimtb.org.br/guarara42a.htm. página de internet [31.1.2018]
SILVA, João Manuel Pereira da , Os varões illustres do Brazil durante os tempos coloniaes. 2 tom. [t. 1], (3.ª Edição),  Rio de Janeiro: B. L. Garnier. 1868

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Memórias: Expedição do Arroio de Barriga Negra (Fevereiro-Março de 1818)


Excerto de BARRETO, João da Cunha Lobo, “Apontamentos historicos a respeito dos movimentos e ataques das forças do comando do general Carlos Frederico Lecor, quando se ocupou a Banda oriental do Rio da Prata desde 1816 até 1823 (…)”, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 196, Julho-Setembro 1947, pp.4-68. Leia aqui a biografia de João da Cunha Lobo Barreto.

«O General Pinto [Sebastião Pinto de Araújo Correia, (1784-1818), biografia], fazendo valer na corte os seus serviços, dizem que propusera a ocupação da Província de Entre-Rios, e para esta expedição se formou na Fronteira do Jaguarão um Corpo de tropas de que ele era o comandante; e dizem até que lhe fora expedido o Diploma de Capitão General da província do Uruguai; titulo de que jamais usou visto que não se pode verificar semelhante plano. Compunha-se esta coluna de um batalhão de libertos do Rio de Janeiro, que estranhando o clima, e as marchas forçadas, que fez desde Santa Catarina até o Rio Grande, estava reduzido a pouco mais de 300 praças; e de vários destacamentos de cavalaria de Milícias do Rio Grande, Santa Catarina e São Paulo; montando tudo em 1,000 e tantos homens. (6)

Avisado o General em Chefe [Carlos Frederico Lecor (1764-18369, biografia] da marcha desta coluna, ou porque temesse que o seu comandante fosse atacado por forças superiores, e derrotado, ou porque quisesse passar-lhe revista antes de seguir o seu destino, o caso é que ordenou reservadamente ao General Silveira [Bernardo da Silveira Pinto (1780-1830), biografia] que se fosse com ela encontrar. 

No dia 8 de Fevereiro tomou este o comando de oitocentos homens, a saber: um batalhão organizado de duas companhias do 2° Regimento de Infantaria da Divisão, e 2 de cada um dos Batalhões de Caçadores; comandado pelo Coronel Francisco de Paula Rosado; os Esquadrões do Coronel Marques [Manoel Marques de Sousa, II (1780-1824, biografia), e dois da Divisão comandados pelo Major Abreu [José de Barros e Abreu, Cav. DVR]; uma bateria de três peças e um obus, comandada pelo Major Andrade ; e as guerrilhas do Coronel Alvim. 

No dia 9 se pôs esta coluna em marcha sobre Canelones, e ali se demorou três dias observada por algumas partidas inimigas; e depois retrogradando sobre a Praça, descansou a duas léguas de distancia por espaço de 24 horas, e a 14 seguiu de noite pela estrada de Maldonado, fazendo assim duas jornadas sobre este ponto; porem ao 3° mudou de direção marchando para o Povo das Minas aonde acampando se demorou oito dias: estes movimentos foram tão bem mascarados, que em algumas destas marchas o inimigo nos perdeu de vista, sem que se pudesse atinar o desígnio de semelhante expedição; pois de certo foi talvez a única manobra reservada, que se desempenhou com mais segredo em todo aquele Exercito; e tanto que todos os comandantes de Corpos ignorarão o fim e tempo que duraria esta digressão, de sorte que o do 1° Batalhão de Caçadores, supondo que iria ocupar a Colónia, permitiu que os seus respetivos oficiais levassem barracas, e toda a sua bagagem, ao mesmo tempo que o do 2° Regimento, persuadindo-se de que seria uma sortida que duraria poucas horas ou dias, tinha mandado as suas companhias só com capotes emalados, e sem a menor bagagem; era na realidade um contraste gracioso; estes posto que mais leves; viam-se rotos, e precisados a estarem mesmo nús junto dos arroios enquanto lavavam sua roupa; e aqueles, carregados com suas mochilas, mal diziam seu peso, porem gozavam da melhor comodidade nos acampamentos, apresentando-se sumamente asseados no acto de revista; esperando porem os seus oficiais perderam todas as bagagens pela velocidade de suas marchas, quando os daquelas companhias se viam no vergonhoso estado de não terem uma camisa para mudar: nesta ocasião se provou o quão próximos se acham o prazer, e o desgosto. 
Levantando daqui acampamento nos entranhamos campo dentro, buscando o Arroio de Barriga Negra, onde fizemos alto por espaço de mais de 15 dias; ignorando ainda o fim desta manobra; apesar de que o General tivesse recebido alguns próprios, que no momento despedia. Tendo-se-nos acabado todas as munições de boca, ficamos reduzidos a comer a simples carne, e sem sal. Os soldados europeus que pela primeira vez sofriam tais privações, sentirão debilidade inexplicável que em pronto degenerava em epidemia se acaso ali nos demorássemos mais tempo.

Lavalleja,(7) que durante a nossa estada nas Minas, apareceu com uma força nas colinas imediatas observando a nossa direção, deixou de nos seguir ao segundo dia que dali levantamos; e assim andamos sem ser molestados por suas guerrilhas, tanto na marcha, como neste acampamento. Por este tempo voltou a aparecer o inimigo nas aproximações do nosso acampamento, e três dias depois se viu ao longe uma coluna, que para nós se dirigia; era o General Pinto, que então observado por aquele o investiu com um forte tiroteio, o que obrigou ao General Silveira a mover-se para proteger as ditas forças.

O silencio, que o inimigo até ali tinha observado, e a rapidez com que deixando suas posições partiu a atacar aquela coluna, deixava a pensar de que ignorava também a sua marcha; pois a sabe-la as forças que ali tinha, e o mau estado em que vinhão as tropas do General Pinto, lhe proporcionavam ocasião, de as bater com muita vantagem; fosse o que fosse, a 20 e tantos de Março estavam os dois generais portugueses reunidos junto ao referido Arroio. 
O General Pinto atendendo as faltas que tínhamos de mantimento mandou distribuir imediatamente á nossa coluna algumas rações de farinha e sal, e ali se demorou por espaço de dois dias ordenando no entretanto que um destacamento de quatrocentos homens fossem buscar todas as cavalhadas, e bois mansos que houvessem na estância de uma viúva, que residia a um dia de marcha do dito Arroio, pelo simples motivo de lhe constar terem ali tomado cavalos alguns desertores dos Corpos da coluna do seu comando: ordem esta que o Tenente Coronel Canavarro [Caetano Alberto de Souza Canavarro, 1.º Bat Caçadores, DVR], comandante deste destacamento não executou; conduzindo só alguns poucos bois e cavalos para o acampamento. 
O General Pinto o repreendeu pela sua moderação, por mais que o mesmo lhe fizesse ver, que os desertores tinham tornado á força cavalos, e roubado um pouco de dinheiro à dita Senhora: e daqui inferimos que outro motivo particular incitava a vingança daquele malévolo General. 

Em abono da verdade diremos que o Tenente Coronel Canavarro, em nada era inferior em condição ao General Pinto; e só sim tinha mais algum talento a que juntava a mais refinada impostura: e por isso o mais apto para semelhante expedição: porem a afabilidade e a prodigalidade com que a dita Senhora tratou tanto a ele como aos oficiais do destacamento, incitou a sua comiseração, pois que, alem de ter sido muito bem hospedado, trouxe um bom fornecimento de pão, vinho, cerveja, e sal, (1) que a mesma lhe ofereceu. Temos sumo pesar de ignorarmos ora o nome desta Senhora, cujo estado nos contristou: era jovem, tinha bastante discernimento e afabilidade impondo quase respeito com seus modelos circunspectos; seu marido tinha sido, havia meses, assassinado no Cerro Largo, e ela conservava seus ossos no quarto em que dormia, em um pequeno caixão forrado de preto, que depositado sobre uma mesa á cabeceira da sua cama era alumiado efetivamente por duas velas; nós a vimos lamentando a sua morte, abrir o caixão e beijar a caveira do seu adorado esposo, sem ver copiosas lágrimas, ou romper em alaridos; mas sim com um ar melancólico que deixando escapar; como com violência, algumas lágrimas, bem patenteava a interna dor que lhe devorava as suas entranhas.

(1) Nesta ocasião não omitiremos que o Capitão Sá (conhecido pelo Sá doido) o desafiou por não repartir com ele um pouco de sal.

Na mesma casa haviam mais dois matrimónios de irmãos seus; posto que ela fosse o chefe de toda a família. Fazemos esta descrição afim de que nossos leitores votando a execração àquele General conheçam qual era a vítima, que pretendia perseguir; e bem digam este modelo do amor conjugal.

O novo Capitão General do Uruguai, tendo fatigado nas primeiras marchas os soldados e com a sua cavalaria a pé, assim mesmo. queria marchar para Entre Rios; porem consta-nos que fora contrariado pelo General Silveira, que lhe fez ver o mau estado das tropas, e o arriscado de semelhante empresa, se deliberou a tomar o caminho de Montevideu. As duas colunas marchavam unidas, mudando diária e alternativamente a sua frente; nos dias que a do General Pinto fazia a vanguarda, ia esta manobrando sempre sobre a marcha, ora tomando posições, ora fazendo escaramuças, até anoitecer; mudando as vezes duas e três vezes de acampamento; ao contrario, a do General Silveira quando formava a testa de coluna, destacava seus atiradores; e sem se demorar mais que o tempo necessário para descanso continuava a sua marcha na melhor ordem; e fazendo acampar os seus soldados, os deixava refazer, e descansar, colocando ele mesmo os postos avançados. 
Sendo diferentes as táticas, e índoles dos dois generais, é fácil de ajuizar de que pronto se indisporiam, o que não tardou a conhecer-se, pois que o 2° pretextando incómodos se meteu no seu coche, de que até ali se não tinha servido; e depois de dar as disposições sobre a marcha da sua coluna auxiliar, seguia assim na frente desta; e tanto é verdade isto, que sendo nós atacados junto do Passo dos – Dois Irmãos — este General montou a cavalo, sem a menor dificuldade, e desta sorte expediu as suas ordens todo aquele dia; sem que a sua saúde tivesse por isso a menor alteração. 

No referido passo houve alguns poucos mortos e feridos de parte a parte: e próximo as imediações de Toledo (8) uma partida das tropas deste mesmo General, comandada pelo Tenente Coronel Canavarro, surpreendeu outra inimiga, ficando em nosso poder oitenta e tantos prisioneiros, incluído o irmão de Fructuoso Ribera, Bernabé Ribera. Afinal chegarão á Montevideu estas tropas em princípios de Abril, depois de uma penosa marcha; porem sem sofrer grande perda; posto que tivessem havido alguns tiroteios, sendo porem o maior o que tivemos á vista da Praça no ato de tocarmos os postos avançados da nossa linha. (9)

Toda a cavalaria de Milícias, que acompanhou o General Pinto, se reuniu aos Esquadrões de linha do Coronel Marques, e ficou debaixo das ordens deste, no lugar do Pantanoso, formando um corpo separado com o titulo de — Divisão Ligeira —: os libertos se aquartelarão dentro da Praça; e a coluna provisória foi desfeita, recolhendo-se as praças, que a formavam, aos respetivos corpos. Por este tempo constou que um batalhão de libertos orientais comandado pelo Coronel Baccá, (10) e a artilharia que lhe estava adida, pretendiam passar-se para o nosso exercito, o General Avillez recebeu ordem para proteger esta insurreição e fez um movimento na linha, porem em ocasião desencontraria, pois só dias depois, e quase imprevistamente é que o dito corpo nos procurou; acossado pela cavalaria dos seus, e se refugiou próximo das nossas avançadas junto ao Serrito da Victoria, a tiro de fuzil das nossas vedetas.

[Notas do Barão do Rio Branco:]
(6) — Eram quase todos soldados bisonhos. Sebastião Pinto desembarcou com eles em S. Miguel, atravessou o banhado de S. Luís, passou o Cebollati no passo da Cruz e colocou-se no rincão do Pará. Aí apareceram o general Rivera e o capitão Julian Laguna, com mais de 2.000 homens, e começaram a incomodar a nossa coluna. 
(7) — Não era Lavalleja, mas sim Julian Laguna.
(8) — Nas imediações de Pando. A força inimiga era comandada pelo capitão Julian Laguna.
(9) — O choque a que se refere o autor teve lugar em Mango. O general Rivera com 800 homens caiu sobre a retaguarda do general Silveira, mas não conseguiu destroçá-la, e retirou-se. Precipitadamente.
(10) — O batalhão amotinou-se contra seu coronel Dr. Rufino Bansá (e não Baccá) e vários oficiais. Foram fuzilados alguns soldados, e outros muitos desertaram, passando-se para Lecor. Sufocado assim o motim o coronel Bansá, depois que Rivera retirou-se do sitio de Montevideu, passou a servir debaixo das ordens de Otorgés. Fatigado e sem esperanças de sucesso, Bansá e seus oficiais Manoel e Ignacio Oribe, Gabriel Velazco, San Vicente, Morjaim e outros muitos resolveram entender-se com Lecor, pedindo que lhes permitisse passar a Buenos Aires. Bansá tinha ás suas ordens 600 libertos e 3 peças de artilha. Obtida a promessa de Lecor, puseram-se em marcha para Montevideu e foram acutilados por Otorguez até as nossas avançadas, onde o general Avilez os recebeu.»

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Exército do Brasil: José Joaquim Machado de Oliveira


O capitão José Joaquim Machado de Oliveira nasceu em São Paulo, a 8 de Julho de 1790, filho do  tenente coronel Francisco José Machado de Vasconcelos e de D. Ana Esmerina (Esméria ou Esmênia) da Silva.

Com um ano e meio de idade, o pai assentou-lhe praça mas só em dezembro de 1807, já com 17 anos, foi reconhecido cadete.  É Alferes em 1809, tenente em 1811 e, finalmente, graduado em capitão em 13 de Maio de 1813, pelos seus serviços na Campanha de 1811-12.

Em 1816, com cerca de 26 anos, é capitão de infantaria da Legião de Voluntários Reais, de S. Paulo, e participa com distinção, nos combates do Passo de Yapeyú e na batalha de S. Borja, e, já em Janeiro, na Surpresa de Arapey, sempre sob o comando direto do tenente coronel José de Abreu.

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Fontes
- VV AA, Anno biographico Brazileiro: 2, Volumes 1-3, Rio de Janeiro, Imperial Instituto Artístico, 1876.

Leia também
- Celebração da Paixão de Jesus Christo entre os Guaranys (Março de 1818) (J. J. Machado de Oliveira)
https://dvr18151823.blogspot.pt/2018/03/celebracao-da-paixao-de-jesus-christo.html

domingo, 18 de novembro de 2018

Liga dos Povos Livres: José Fructuoso Rivera


O coronel JOSÉ FRUCTUOSO RIVERA (Y TOSCANA) nasceu a 17 de outubro de 1784 em Durazno, filho do proprietário rural Pablo Hilarión Perafán de la Rivera Bravo e de D. Andrea Toscano. Era também conhecido por D. Frutos.

Alista-se desde logo às forças patriotas em 1811, como Alferes, assistindo à tomada de Colla (hoje Rosário) a 20 de abril, e participando no combate de San José, cinco dias depois, sob o comando de Venancio Benavides. Já como Teniente, incorpora-se no exército de José Artigas no Canelone Chico, cinco dias antes da batalha de Las Piedras, a 15 de Maio de 1811, em que terá participado, sendo graduado em Capitán após a mesma.

Em 1812, combate a primeira invasão portuguesa na zona de Missões, sob o comando de Fernando Otorgués. Participa depois no 2.º sítio a Montevideu, entre 1812 e 1813, em várias ações, ganhando reputação entre os seus pares. Foi ferido numa ação no arroio Seco a 1 de novembro de 1812. A 31 de dezembro, participa na ação do Cerrito, sendo efetivado no posto de capitán por essa altura. 


Em 1813, comanda pela primeira vez colunas independentes das três armas, sendo promovido em seguida a Sargento Mayor, pouco antes da ação de Sótea (esta contra uma força centralista, fiel a Buenos Aires).  Já como Teniente Coronel, comanda as forças federais na batalha de Los Guayabos, onde derrotou um exército de Buenos Aires, a 10 de Janeiro de 1815. É promovido a Coronel da linha do Ejercito Oriental, com o comando do novo Regimiento de Dragones [de la Libertad]. 

Em 1816, com 32 anos, comanda a División de Observacion (ou de La Derecha), na zona de Rocha e Maldonado, destinada a observar e conter a Divisão de Voluntários Reais. Foi anteriormente o governador militar da cidade de Montevidéu por grande parte de 1816, até Setembro, quando sai em campanha.

Comanda as forças federais na batalha de India Muerta, onde é derrotado apesar das suas felizes escolhas táticas, na Ação de Santa Lucia e na observação/sítio a Montevideu, após cair em mãos portuguesas.

Vem a ser, em 1830, o primeiro presidente da República Oriental do Uruguai.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Exército do Brasil: João Vieira de Carvalho


O sargento mor João Vieira de Carvalho nasceu em Olivença, em 16.11.1781, filho do coronel João Vieira de Carvalho e de D. Vicencia da Silva Nogueira de Carvalho. Estudou no Real Colégio dos Nobres. Assentou praça na 3.ª companhia do 2.º Regimento de Infantaria de Olivença como soldado a 10 de Janeiro de 1786, tendo 5 anos, e foi reconhecido cadete dez anos depois, a 10 de Dezembro de 1796.

Foi promovido a alferes em 18 de Fevereiro de 1801 (2.ª companhia), e, depois, a tenente ajudante, em 15 de Agosto de 1805. A 13 de Março de 1806, é promovido a capitão da 3.ª companhia, e é durante esta altura que frequenta Estudos Mathematicos em Lisboa, que tudo indica ser o Real Colégio dos Nobres, mas que poderá ser a Academia Real de Marinha.

Num livro mestre do seu regimento, é referido que ele “foi pela desorganização do exército para o Brasil”. Não é certo quando, mas decerto faz referência aos inícios de 1808 quando o exército português foi licenciado por Junot. De acordo com as informações acerca dos oficiais engenheiros que serviram nas campanhas de 1809 a 1814, João Vieira de Carvalho não é listado, pelo que é de entender que terá partido para o Brasil em 1808.

Em 1809, é promovido a sargento mor do Real Corpo de Engenheiros. Como Sargento Mor faz as campanhas de 1811-1812 e as de 1816-1817, Rio Grande do Sul, sendo promovido a tenente coronel nesse último ano.

Foi barão, conde e finalmente marquês das Lages. Foi ministro da Guerra por quatro vezes.

Leia Também
Transcripto: Informação sobre a situação político-militar das províncias do Rio da Prata enviada ao marquês de Alegrete (João Vieira de Carvalho):
http://dvr18151823.blogspot.com/2018/01/transcripto-informacao-sobre-situacao.html

sábado, 3 de novembro de 2018

A Evasão dos 33 Portugueses (17-25 de Maio de 1817)


A 17 de maio de 1817, 33 militares portugueses, 22 deles da Divisão de Voluntarios Reaes, e 11 do Exército do Brasil, 7 oficiais e 26 sargentos e praças, fazem um buraco na parede traseira da prisão onde estavam, em S. Domingo Soriano, hoje Vila Soriano, 100 quilómetros dentro do rio Uruguai, onde o rio Negro se lhe reúne. 

Tendo prévio conhecimento da permanência ali de uma balandra federal, totalmente equipada, a ideia era tomá-la, não só para navegar à liberdade, mas para negar a munição ao inimigo. Uma balandra, uma espécie de sloop ou chalupa, é um barco à vela adequado à navegação fluvial. De acordo com o alferes Francisco António da Silva, da cavalaria da Divisão, foi o tenente do Estado Maior Jacinto Pinto de Araújo Correia que planeou e liderou a evasão.



O grupo de 33 evadidos, a que adicionaram nove “paisanos” agregados à Divisão, dirige-se, então, à praia no rio Negro, mas não encontrando a balandra esperada, acabaram, em desespero, por se lançar a nado encontrando providencialmente outra lancha. A balandra “5 de Julio” é tomada, apesar de alguma resistência e gritos de alarme da guarnição, e os 42 portugueses podem finalmente tomar o sul, com destino a Montevideu.

Alguns dos prisioneiros já estavam em cativeiro desde o 9 de setembro, prestes a chegar aos nove meses, quando dez cavaleiros das Milícias do Rio Grande (2) e da Legião de São Paulo (8) foram capturados na ação de Castillos. A vasta maioria (23) tinha sido capturada durante o mês de Dezembro, na estrada junto à costa atlântica, na marcha para Montevideu.


Praia, Isla Martin Garcia (fonte Wikicommons)

No dia 19, dia e meio depois, a “5 de Julio”, agora com uma bandeira portuguesa, “as sagradas quinas luzitanas”, “que muito à pressa construiram”, chegou junto da ilha Martin Garcia, que marca a foz do Uruguai e o início do Rio da Prata, 100km a sul do início da jornada. Tendo avistado uma embarcação de guerra que suposeram oriental, a guarnição do “5 de Julio” propôs-se a sua tomada, mas verificou que o mesmo tinha bandeira de Buenos Aires. Após este último susto, as autoridades argentinas facilitaram a chegada dos militares portugueses evadidos, o que vem a acontecer, cinco dias depois, a 24 de maio.

No dia seguinte, Montevideu acorda com frescas notícias extraordinárias. Nesse mesmo dia, o capitão general Carlos Frederico Lecor, em carta a El-Rei Dom João VI, dá nota do extraordinário evento, “um sucesso daqueles que aparecessem de século em século”.
Ainda que a celebração em torno da evasão dos 42 portugueses nos pareça hoje algo exagerada, o seu poder de aumento do moral foi enorme numa divisão que só há apenas quatro meses detinha Montevideu, e após duas sortidas que não ofereceram vantangens e apenas agravaram a questão do abastecimento da cidade.

Jacinto Pinto de Araújo Correia
O oficial a quem todos atribuem a liderança nesta evasão é o tenente Jacinto Pinto de Araújo Correia. A sua captura, a 11 de Dezembro de 1816, cinco meses antes, foi particularmente notória no Exército por duas razões. Primeiro. ele era o irmão do marechal Sebastião Pinto de Araújo Correia, o comandante da vanguarda e n.º 2 da Divisão. Segundo, a captura deu-se 3 dias após a ação de Sauce, uma das piores derrotas portuguesas antes da tomada de Montevideu.


Monumento a Artigas (Rocha). Ubicada en el departamento de Rocha (fonte: Wikicommons)


João da Cunha Lobo Barreto [CONHEÇA MAIS], também ele tenente, refere-se ao caso nas suas memórias, atribuindo a captura a uma certa incúria profissional, o que realça o perigo constante dos ataques federais na área de Maldonado e Rocha, agora em plena guerrilha após a derrota em India Muerta. Já depois da tomada de Montevideu, nas duas incursões, os orientais, liderados por Juan Lavalleja, voltam a ensinar essa lição a retaguardas portuguesas isoladas do corpo principal, no Pintado e em Toledo.


“Novo acontecimento tambem pôz em cuidado o General Pinto, o Tenente do Estado Maior Jacinto Pinto (seo irmão) e um comissário com outro indivíduo, se deixarão ficar em Santa Thereza (alguns dizem, que divertindo-se) e depois de sahirem todas as tropas se metterão a caminho sosinhos, até que chegando ao Povo de Rocha forão prisioneiros”.(Lobo Barreto, p. 11)

Division de la Derecha
As forças federais de Artigas estavam, por esta altura, a ter os seus próprios problemas. Menos de um mês após a visita de José Artigas à División de la Derecha (comandada desde setembro por Frutoso Rivera), onde assistiu ao combate de Toledo, a 5 de Maio, há um conflito de comando, percebendo-se que Rivera era substituído por Tomás Garcia de Zuñiga, com o apoio de vários oficiais. Só após ordem positiva de Artigas é que Frutuoso Rivera reassume o comando.  É a segunda revolta do ano, após o batalhão de Libertos em Purificación, em Fevereiro, e sua passagem a Buenos Aires, assegurada pelos portugueses.


* * *

O tenente Jacinto Pinto de Araújo Correia,  irmão do Ajudante General da Divisão, nasceu em 1794, em Viana do Castelo, filho do marechal de campo Francisco Pinto de Araújo Correia. Enquanto cursava humanidades, o apelo à defesa da pátria em perigo o faz alistar-se como cadete no Regimento de Infantaria n.º 18, a 5 de outubro de 1810. Já como cadete porta bandeira, é promovido a alferes de Infantaria 6 a 9 de janeiro de 1813, e como tal participa nas campanhas de 1813 e 1814, na batalha de Vitória e em St.Pierre, onde é ferido e aprisionado pelos franceses até que se vê libertado horas depois pelo marechal de campo Carlos Frederico Lecor, então comandante da Divisão Portuguesa. 
Passa, com 22 anos, à Divisão de Voluntários Reais do Príncipe, como tenente assistente do Quartel Mestre General, e, anos depois, em 1847 é coronel do Estado Maior, comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro.


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Carta do tenente general Carlos Frederico Lecor ao Rei Dom João VI, escrita de Montevideu, a 26 de Maio de 1817.


Senhor
Aprezentando-se muito Raramente ocazioens, que enchão tanto o Coração de hum Chéfe, que dezeja acreditar as Suas Tropas, e o Comando, que dellas se lhe conferio, como a prezente, gostosamente lanço mão della para levar ao Soberano Conhecimento de Vossa Magestade hum sucesso daquelles, que aparessem  de Seculo, em Seculo, e que tem o mesmo Cunho dos que tanto honraráo os Heroes Portuguezes.

[25.5.1817]
No dia de hontem entrarão nesta Bahia os individuos, comprehendidos na Rellação incluza; que protegidos pela Divina Mão, que abençoa o Reinado de Vossa Magestade, e os homens, que servem com virtude a Sua Patria, e o Seu Monarca, lograrão libertar-se gloriosamente da pezada escravidão,em que gemião.

Este Successo hé acompanhado de circunstancias demaziadamente notaveis, e que reflectam muita importancia em todos os individuos,  que  nelle  tiverão parte, e  com especcialidade no Tenente Jacinto Pinto d'Araujo Assistente do Quartel Mestre General, que, de acordo com o Alferes Francisco Antonio da Silva da Cavallaria desta Divizão, concebeu, e levou a efeito huma Empresa tão benemerita, e que tanto honra lhe faz.

Estes officiaes estavão, com os outros prizioneiros, em Santo Domingo Soriano, junto da confluente do Rio Negro, debaixo da guarda, que hum Tenente Comandava; e sabendo, que naquelle Porto se achava huma Balandra, com Bandeira Oriental, carregada com petrechos de guerra; projectarão apossar-se della, não só para subtrahir-se á pezada escravidão, que os oprima, mas para tirar ao inimigo hum tão avultadonumero de Artigos, intereçantes ás suas Operaçoens, como os que a dita Balandra continha.

A Fuga [17.5.1817 - noite]
A Providencia protegeu tão nobre, honrado, e bravo pensamento; e deixou que elles, na noite do dia 17 do corrente, tendo podido praticar na parede da sua prizão huma abertura por onde sahirão, sem que pelas Sentinellas fossem persentidos, se dirigissem á praia, onde, malograda a esperança de achar embarcação,  em  que se transbordassem  para a Balandra indicada, possuidos absolutamente do seu objecto, e Resolvidos a sacrificar por elle as Vidas, que tão comprometidas ja tinhão, corajosamente se lançarão a nado; e conseguido apossar-se de huma lancha, que perto havia, apezar dos gritos, com que os donos querião embaraça-los, lograrão finalmente apoderar-se da Balandra - Cinco de julio - e de toda a sua tripulação e Carga, Arvorando, cheios daquelle inexplicavel goso, que dá o bom Resultado, quando elle nace do Valor e da Virtude, o Sempre Triunfante Pavelhão das Sagradas Quinas Lusitanas, que muito á pressa construirão, o melhor, que as circunstancias lhes facilitarão.

[19.5.1817 ]
No dia 19 do corrente, Navegando para esta Praça, derão vista, junto de Martin Garcia, de huma Embarcação de Guerra, e julgando pela situação, que pertencia aos Orientaes, decidirão tomala, e só os dissuadio o saberem depois, que era de Buenos Ayres, para onde forão dirigidos pela ditaEmbarcação, a cujo Comandante contárão, que gente erão,  de que circunstancias vinhão e o fim a que se propunhão.

O Director Supremo daquelle Governo muito generosamente lhes franqueou quantos Socorros necessitavão, e teve a bondade de os enviar a este Porto, onde felizmente chegárão, dando a todos os Individuos desta Divizão hum Soblime Exemplo de bravura, honradez, e lealtade; e hum dia de completa Satisfação.

Inclusa Remeto a Vossa Magestade a Lista dos Objectos, aprezados a bordo da Balandra pelos Vallentes Prizioneiros, cujos nomes contem a Rellação indicada, e Rogo a Vossa Magestade, com a maior Submissão que, Servindo-se Usar da Sua  Real Munificencia, Haja por bem Tomar em Consideração hum facto, que tanto acredita o Patriotismo, e a Valentia dos que nelle intervierão, Dignando-se conferir a tão distintos Vasallos  aquelles Premios de que se fazem merecedores.

Deos guarde a Vossa Magestade muitos annos.


Monte Video 26 de Maio de 1817.

De V. Mag.de Fiel Vassallo
Carlos Frederico Lecor.


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Excerto do Diário de Lisboa, Março de 1818, regerente a decreto de 19 de Novembro de 1816


Relação dos prisioneiros Portuguezes, que no dia 17 de maio tão gloriosamente se libertaram

Estado Maior
Jacinto Pinto de Araújo, Tenente, prisioneiro em Rocha em 11 de Dezembro de 1816, marchando para o exército.

Cavalaria, Divisão de Voluntarios Reais
Francisco Antonio da Silva, Alferes da 4.ª companhia, prisioneiro em Mata-ojo em 8 de Dezembro de 1816, em attaque
Vicente Ferreira Brandão, Alferes da 10.ª companhia, idem
Manuel Coelho, Furriel da 6.ª companhia, idem
José Manoel, soldado da 3.ª companhia, idem
Manoel Ventura, dito, dito, idem
José Cardozo,  dito da 4.ª companhia, idem
Antonio Rodrigues, dito, dito, idem
José Procópio, dito, dito, idem
Domingos Rodrigues Villarinhos, dito da 10.ª companhia, idem
José Garcia, dito da 12.ª companhia, idem
Antonio Valles, dito, dito, idem
Antonio Braz, dito, dito, idem

Artilharia, Divisão de Voluntarios Reais
João Custodio Villas-Boas, Cadete da 1.ª companhia, prisioneiro em Santa Thereza em 25 de Dezembro de 1816. Estava destacado.
Antonio de Almeida, Soldado da 2.ª companhia, idem
Florêncio Roza, dito, dito, idem

Primeiro batalhão de Caçadores, DVR
Vicente de Oliveira, Corneta da 5.ª companhia, prisioneiro em Maldonado em 19 de dezembro de 1816, sahindo a ir buscar agoa.
Manuel da Cruz, soldado da dita, idem.

Segundo Regimento de Infantaria, DVR
João dos Reis, Soldado da 1.ª companhia de Granadeiros, prisioneiro em Rocha em 2 de Dezembro de 1816, em attaque de forragens.
Francisco de Carvalho, dito, dito, idem.
José Correia, dito, dito, idem.
Filipe Henriques, dito, dito, idem

Cavalaria, Legião de Voluntários Reais de São Paulo
Joaquim José de Bettencourt, Tenente da 3.ª companhia, prisioneiro em Castillos em 4 de setembro de 1816, em attaque.
João Ribas Sandim, Cadete da 2.ª companhia, idem
José António de Oliveira, Cabo da 4.ª companhia, idem.
José Joaquim de Barros, Soldado da dita, idem
Manuel Gonçalves, dito, dito, idem.
João Rodrigues, dito, dito, idem.
José Francisco de Sequeira, dito da 2.ª companhia, idem.
Joaquim Rodrigues, dito, dito, idem.

Regimento de Cavalaria de Milícias do Rio Grande
Francisco Carneiro de Fontoura, Alferes da 1.ª companhia, prisioneiro em Rocha em 11 de Dezembro de 1816, marchando para o Exercito.
Francisco Antonio, Soldado da 3.ª companhia, prisoneiro em Castillos em 4 de Setembro de 1816, em attaque.
Manuel Silverio, dito, dito, idem.

(+ 9 paisanos, agregados à divisão, prisioneiros em differentes lugares).

Resumo dos dias em que foram capturados:
4/9 (Castillos) – 10 (Legião São Paulo e Reg Milícias Rio Grande)
2/12 (Rocha, forragens) – 4 (2.º RI)
8/12 (Mata Ojo/Sauce) – 12 (Cavalaria DVR)
11/12 (Rocha, marcha para o exército) – 2
19/12 (Maldonado, a buscar água) – 2 (1.º BatCaç)
25/12 (Santa Teresa) – 3 (Artilharia)


Os sete oficiais foram todos promovidos ou graduados ao posto seguinte a 19 de novembro de 1817.

sábado, 27 de outubro de 2018

O vencido de Carumbé (Gustavo Barroso, 1930)


“Artigas há sido completamente derrotado y se há refugiado en los bosques...”
(Carta de Puerreydon a San Martin)

Um turbilhão de cavalos rolava sobre as coxilhas verdes à luz quente do sol de outubro. Os oficiais à frente, as esporas enterradas no vasio dos zainos e dos malacaras. Os lanceiros milicianos, de lanças em riste, quasi de pé, apoiados nos pesados estribos de bronze. Os dragões, com as clavinas curtas a tiracolo e nas mãos, altas no ar, os curvos sabres refulgindo. E a bandeira real agitada ao vento nas palpitações convulsas da carga.
Eram uns quatrocentos homens – dragões de Lunarejo de Sebastião Barreto, lanceiros do Rio Pardo de Francisco Pereira Pinto e legionários paulistas de Silva Brandão. À ordem de carregar, os esquadrões se tinham movido como em uma parada. Depois, a voz dos oficiais ordenara:
- A trote!
Os animais aceleraram a marcha. E, logo, a segunda ordem dominou, forte, o tropear da cavalhada:
- A galope!
Então, mal os baguais espumantes tomavam o impulso da corrida, sobre eles ecoou o mandado terrível:
- Por esquadrões, carregar!
O turbilhão rolou pelas coxilhas verdes, esmagando a macega meio ressequida, e foi bater cegamente a infantaria de Artigas abandonada no meio da planicie. Recebeu-o uma descarga estralejante. Alguns cavalos e alguns cavaleiros caíram. O turbilhão passou por cima deles. Um baque surdo. Uivos de dôr. Barbaros gritos de raiva. Detonações isoladas. E o rumor sinistro dos ferro mordendo as carnes e os ossos: baionetas que entravam no pescoço dos cavalos, lanças que varavam peitos e costas, sabres que fendiam ombros e craneos.
A infantaria artiguista fraquejou. Desfizeram-se os liames da formatura. Os soldados dispersaram-se em grupos, defendendo caramente a vida do ataque dos cavaleiros. A cavalaria brasileira caracolou à direita e à esquerda. Ouviam-se brados roucos. Os dragões abriam caminho pela pampa a talho e ponta de espada. Os lanceiros paravam de combater, cansados de matar. E o vento brincava nas bandeirolas de suas lanças empurpuradas de sangue.
Assim, fôram derrotados os últimos soldados de José Gervazio Artigas, chefe da confederação do uruguai, Corrientes e Entrerrios, nos campos dos serros de Sant'Ana, que os orientais denominam Carumbé, pelo brigadeiro Joaquim de Oliveira Alvares.

* * *

O general Curado, que defendia nossas fronteiras do sul, mandara-o reconhecer as posições de Artigas com menos de oitocentos homens e duas peças ligeiras. EM frente aos serros, a coluna expedicionária viu-se de repente em presença de grande força inimiga. Comandava-a Artigas em pessôa. Eram mil e seiscentos homens, dos quais quinhentos de infantaria mandados por Toríbio Fernandez e mil e cem cavaleiros guiados por André Latorre, Baltazar Ojeda, Inácio Gatelli e Domingos Manduré.
Surpreendido em ordem de marcha, Alvares foi forçado a aceitar combate. Ocupou rapidamente pequenas lombas, colocou bem a artilharia e, quando a numerosa cavalaria adversa o atacou, metralhou-a à vontade. Campo de tiro excelente. Artilheiros habeis. Canhões pequenos com bôas parelhas de machos atrelados aos armões, podendo ter grande mobilidade, fizeram perder muita gente à gauchada entrerriana e corrientina, enquanto parte de sua infantaria de apoio, os legionarios paulistas de Galvão Lacerda, dificultavam aos chefes artiguenhos reconduzir as cavalarias ao combate.
Esgotadas as reservas, brechados os esquadrões pelas granadas de Bento José de Morais, afeito a metralhar corrientinos e que os dizimara havia uma semana no Ibiroacaí, perdido o impulso primitivo pelo cansaço das cargas improfícuas, dispersos e espingardeados pelotões inteiros pelas guerrilhas de João Pais e Alexandre Luiz de Queiroz, Artigas sentiu-se  escarpar-se-lhe das mãos a sorte da peleja e apelou, como derradeiro recurso, para a infantaria.
O regimento de Toribio Fernandez avançou a marche-marche. Foi aí que o brigadeiro Alvares atirou sobre ele o turbilhão de dragões e lanceiros. Os esquadrões descoseram as companhias corrientinas de amplas gandolas escarlates. Os sabres e as lanças embebedaram-se fartamente no sangue dos defensores do caudilho. A derrota desgrenhada assoprou o panico nas filas desorganizadas e nos grupos dispersos, açoitando pelos agrestes caminhos dos serros de Sant'Ana, na mesma confusão, peões e cavaleiros.

* * *

“Graças á velocidade de seu cavallo” - afirma conciencioso escritor – Artigas pôde escapar. Os cavalarianos vencedores viram-no ao longe, galopando entre um oficial e um frade, - o indio Manduré, comandante de seus lanceiros negros, e frei Monterroro, seu secretario.
Enquanto, entre centenas de mortos e feridos, os guerrilheiros de Jacinto Guedes recolhiam troféus: armas de preço, tambores, estandartes; contavam os prisioneiros, e reconheciam no meio dos cadaveres o do comandante Inacio Gateli, sobrinho do ditador, este fugia, como fugiria no Arapeí, como fugiria no Arroio da China, como fugiria no Taquarembô...
Escurecia quando meteu o fatigado cavalo num vau do Arapei. O oficial indio seguia-o em silencio, o rosto carregado de odio. O frade gemia e se lamentava sacudido pelos passos incertos do animal dentro dagua, o habito arregaçado, as pernas nuas beijadas pela correnteza fria. Fôram ter a uma pequena ilha deserta. O guarani acendeu uma fogueira debaixo das arvores. O frade gemeu e acabou enrodilhando-se no chão e ressonando. O caudilho derrotado, de pé, braços cruzados ao peito, cravava o olhar nas chamas. E as labaredas agitavam sua sombra desmesurada na alta barrança do rio...
Ao longe, os quero-quero gritavam. Nos capões de mato, estridulavam corujas. O vôo rapido dos curiangos cortava a clareira. O indio encostou-se a uma pedra musgosa, cerrou os olhos e adormeceu...
Quando a luz do sol acordou a campanha verde, o rio cinzento e o ceu azul, Artigas ainda estava na mesma posição. A fogueira extinguira-se sob o orvalho da madrugada. Seu olhar fixo mergulhava filosoficamente nas cinzas humedecidas.

Fonte
BARROSO, Gustavo, A Guerra de Artigas, s/l, Ed. Getulio M. Costa, [1930]. pp. 27-34