quinta-feira, 22 de março de 2018

Celebração da Paixão de Jesus Christo entre os Guaranys (Março de 1818)


A CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DE JESUS CRISTO ENTRE OS GUARANIS.
(Episódio de um Diário das campanhas do Sul.)
Por José Joaquim Machado de Oliveira, Sócio efetivo do Instituto.

Os Americanos devem procurar na historia, nas scenas da região que habitam, os quadros, os similes, as imagens, para compor ou adornar os seus escriptos !.... PANORAMA.

I.
A Capella de Alegrete.

No outono de 1818, o acampamento de Alegrete, que fora improvisado em dois dias na margem esquerda do Ibirapuitã (1) pela famosa coluna do General José de Abreu, depois que separou-se da divisão do General Curado, ia-se metamorfoseando em capela, que na Província de S. Pedro é o preliminar de grandes povoações. O primeiro assento do arraial militar foi na ourela do rio, onde este descreve a sua maior sinuosidade, e tem no centro o Passo-geral, que é um ponto convergente de diversas estradas e caminhos, que vem de diferentes povoações e estâncias da campanha. Mas, si esta localidade era azada para o alojamento temporário de guerreiros, que, fatigados de longas marchas, de vigorosas escaramuças contra as hostes de Artigas, e do regido serviço do acampamento do Quaraí, anhelava um paradeiro, que pusesse termo a tamanha lida, não preenchia o objeto e as esperanças do chefe entre-riano, cujo pensamento era erigir uma povoação, que simbolizasse á posteridade seus feitos de armas, e chama-se a civilização e o comércio ao país, que abrangia suas grandes estâncias, e formava o seu melhor apanágio. Esta empresa tinha por fundamento um direito tradicional, que competia aos generais continentinos no cabo de suas campanhas, e para perseverar a extensa autoridade de sua temível espada no remanso da paz e fora das contendas marciais.

(1) Rio de Pau-vermelho, ou do Angico, na língua Guarani.

A divisão do General Curado, depois da celebre batalha de Catalán, retirara-se para a margem direita do Quaraí, distinta e pujante com os louros dessa batalha, e das de Arapeí, Missões. Carumbé e Ibirocaí, depois de expelir para além dos confins da província as hostes de Artigas, e de em três meses recuperar o extenso território desde Missões até Quaraí, de que o inimigo se havia assenhoreado com incrível velocidade. Convinha, porém, expurgar completamente de aquém do Uruguai essas hordas barbaras, que tão devastadoras e infensas tinham sido ao solo ocupado, e que de novo tomavam nos campos de Montevideu uma atitude hostil e ameaçadora. A divisão pois teve de deixar aquela posição; e a coluna Abreu, que tão gloriosa parte tivera naqueles sucessos, a substituiu na duplicada tarefa de defender e segurar a fronteira. Seguido de seu ajudante, a quem apelidara com o titulo científico de – engenheiro de acampamento –,  e menos por sua capacidade profissional, do que para bem merecer a categoria de fundador de povoações, o enérgico chefe passava as manhãs na colina mais vizinha do Passo-geral a estender a sóga (2), com que traçava instintivamente os cimentos da futura capela.

Do Passo-geral começa a erguer-se uma colina, que a pouca distancia, e como sua primeira ondulação, entra e se confunde na coxilha sobranceira e paralela à margem ocidental do Ibirapuitã, e que se desdobra por uma extensão imensa até o encontro da grande Coxilha de Santa Anna, que vai terminar no Uruguai, alimentando com fontes perenes os dois Ibirapuitãs classificados em guaçú e chico (grande e pequeno), o Inhanduí, o Ibirocaí (rio de pau de canoa), todos tributários do grande Ibicuí (rio de areia), um dos maiores membros do sistema fluvial da província. É nesse risonho sítio que se edificou a atual vila de Alegrete, para cujo fundamento contribuíram o prestigio dos heroicos feitos de armas do General Abreu na guerra contra Artigas, e a sua autoridade militar, elementos estes de que sempre se lia de ressentir aquela povoação.

(2) Cordel comprido de couro, que se ala no animal, que sequer conservar preso em lugar onde possa pastar.

Já das vizinhas matas se derribavam os angicos, os ipês e os torumans seculares, e das ribas pedregosas do Ibirapuitã desapareciam, como por efeito de incêndio, as toceiras do santa fé (3) e o flexível caraha (4) para a construção das casas, e da igreja onde se devia recolher e adorar a imagem da Virgem Aparecida, depois do seu miraculoso resgate do poder dos artiguenhos, que a tinham arrebatado da capela de Inhanduí, quando em suas primeiras correrias incendiaram aquela sucursal, e que merecia particular veneração do chefe da coluna por tê-lo (como ele dizia) livrado sempre das balas inimigas.

Do devoto serviço de traçar as dimensões da igreja compartilhava o sisudo capelão da coluna, que, com uma fisionomia bíblica, e sem alterar o seu andar grave e solene, sempre de acordo com o seu carácter místico e balofa corpulência, olhava o trabalho através de dois grandes vidros, que lhe mascaravam a frente, e indicava com o dedo engastado num ingente anel os pontos que devia abranger o recinto do santo edifício.

Aventureiro no Continente, e por especulações simoníacas entre um povo generoso e ingénuo, cheio de fé e de crença, o bom Padre, a pretexto de auxilio para a construção de uma igreja em país além do Atlante, e cujo orago, por seu assenso manifestado milagrosamente, como ele só afinava, o havia incumbido dos aprestos para essa obra pia, granjeava, mediante o seu sacerdócio impuro, e com uma consciência elástica, um pecúlio em moeda e bestas para o próprio passal. Uma copia viva do polposo Gil Peres de Lesage, mesmo em seu acanhado sensório, nesta criação faceta da natureza o pincel do caricaturista não dependia dos traços de um pensamento fantástico para expor aos dilettanti uma composição risível, um completo exemplar para uma nova epopeia cómico-burlesca.

(3) Uma espécie de gramínea com que se cobre as casas.
(4) Outra gramínea, que tem a flexibilidade do vime.

Em quanto os aventureiros entre-rianos, dirigidos pelo seu famoso cheio, lançavam os fundamentos da capela do Alegrete, a companhia dos naturais lanceiros com o seu capitão Chico, que formava uma parte integrante da coluna Abreu, e com ela compartira os louros, que a fortuna da guerra dispensara com mão larga a esse general, construia um apêndice da capela, que devia servir para o seu alojamento sob o titulo de aldeia. Não era sem o concurso da gente da raça guarani, que se empreendiam essas povoações nas vastas e remotas campinas do Continente. Submissos no trabalho por mais rude e assíduo que fosse, nimiamente sofredores nas privações, e pouco exigentes no serviço dos brancos eram os guaranis considerados como a parto indispensável e mais interessante dos elementos materiais que entravam na formação desses estabelecimentos; sendo para tal fim atraídos por promessas falazes, por ajustes leoninos, de que só se realizavam os deveres da parte contratada.

Mui suscetível de impressionar-se dos princípios da religião, do sentimentalismo e do maravilhoso; sugeria a uma intelectualidade abstrata; de uma compleição indolente, linfática; sem energia, sem os improvisos, a penetração, o fogo de um génio ardente audacioso, a tribo guarani recebeu dos seus primeiros civilizadores, os Jesuítas, com um preceito divino, a doutrina insidiosa e infamante, que lhe prescrevia, como a uma raça banal e maldita, a servidão e a ignóbil sujeição aos brancos. Esta herança fatal e cavilosa tem sido transmitida, como um legado sagrado, de geração a geração... e o será até a consumação dos séculos! Seus pais a herdaram dos Jesuítas, eles a legaram a seus filhos com toda a sua perfídia original, e estes não curaram de alienar de seus descendentes tão abjeta condição. Raça degenerada pelo homem civilizado, por ele prostituída, votada sempre à escravidão e à ignomínia, terá de permanecer até a extinção do seu último individuo neste estado de degradação e aviltamento, seja pela sua apoucada inteligência, ou por essa preocupação tradicional do anátema divino, a que supõe-se condenada.

Vitima de uma civilização errónea e corrompida, proscrita, aniquilada já, reduzida a pequenos grupos nessas povoações teocráticas do Uruguai, que formam uma parte dessa criação ciclopeana dos Jesuítas na vasta região do Guaira, ou amontoados em alguns recantos das povoações e estâncias da campanha, ou sem habitação fixa, levando uma vida nómada ou selvática nos campos, e nas extensas florestas da serra geral, rojam na miséria, e na indolência e ociosidade; e, como a horda de charruas e minuanos, disputando com as matilhas de chimarrões (5) a posse da avestruz e do poldra da bagualada (6) com que se devem alimentar, ou, em fim, estimulados pela fome e nudez entregam-se á rapina nos campos , de cuja propriedade primordial foram atrozmente esbulhados: e é desta condição degradante, que fica muito abaixo da que lhe competia em relação à sua origem livre, e á sua índole dócil e pacifica, que provem o antagonismo natural e indefinido do índio contra o branco, e essa dissimulação e ar de infidelidade que se discrimina em seu procedimento, quando se acha ao serviço de outros que não sejam os de sua raça, aos quais trata com as mais puras e leais afeições, o lhes procura todos os meios de formar o seu bem-estar.

Pouco distante da colina em que se traçava a capela de Alegrete, estende-se outra menor, separada daquela por uma quebrada (garganta) do terreno, em cujo fundo serpeava uma sanga (sanja), que ia abicar no Ibirapuitã, e servia de esgoto ás enxurradas. Esse sitio de menor superfície, e em gradação mais inferior, foi o designado para o alojamento da companhia de lanceiros, que ao depois tomou o nome mais significativo da aldeia. A quem não conhecesse o indeclinável divórcio, que subsiste entre as duas raças, esse muro de bronze que as separa, e que só há de desmoronar-se com a extinção dos indígenas; só pela simples comparação desse local com o da capela, lhe seria manifesta essa deplorável rivalidade, que por três séculos tem enchido de acerbas dores os corações bem formados. Em breve tempo fantasiou-se ali um grupo de copes (7) com suas ramadas na frente, e a cujo delineamento e obra presidiram a confusão e a negligencia. 

(5) Bandos de cães bravios, vagando nos lugares onde pasta a bagualada.
(6) Manadas sem numero do animal cavalar, que andam montadas e sempre a corso com incrível velocidade.
(7) Pequenas cabanas construidas de madeira e palha, em que habitam os índios guarani.

Além da necessidade, que pungia os guarani para a fabricação do seu alojamento, de se garantirem da intempérie das primeiras geadas do inverno, que já em Abril começam alvejar os campos ; cumpria-lhes também celebrarem a paixão de Jesus Cristo na quaresma daquele ano, segundo as formulas praticadas pelos jesuítas, e que lhes foram transmitidas com zelo, perseverança e acatamento. Esta piedosa comemoração, interrompida pela guerra com dor mística dessa gente, devia exercitar-se então em grande aparato, e com todo o apuro de sua dedicação ao Crucificado, menos por intrínseco sentimento de crença ortodoxal, do que por imitação e costume tradicional; convencendo-se devotamente de que, quanto mais se manifestassem contritas as consciências, e votadas a toda a expiação; quanto mais compungentes fossem suas oblações propiciatórias, melhor aplacariam a cólera divina em que supunham ter incorrido pela involuntária interrupção da serie ânua desses atos.

A religião, na fraca e acanhada inteligência dos guarani, torna-se para eles o mais forte, e por assim dizer, o único habito moral da sua vida: o objeto mais essencial que ela lhes apresenta, e que lhes sugere a mais escrupulosa atenção, é o culto explicito das imagens exercido com estrépito e aparato singelo; e o ministro deste culto, que eles olham como o dispensador das graças celestes, que pode pela forca maravilhosa de suas orações, e interposição de oferendas, amenizar a intempérie das estações, neutralizar os males físicos e aflições da humanidade, fazer abundantes os frutos da terra, e predispor o caminho para a felicidade eterna atrai facilmente as suas mais vivas e ternas afeiçoes, e tem sobre seus ânimos um predomínio exclusivo. É assim que com esta suscetibilidade ascética fundaram os jesuítas esse predomínio, e lhe revestiram de tal consistência, que, atravessando os tempos e afrontando a luz da civilização, ainda deve preponderar até o desaparecimento do ultimo individuo genuíno da raça.

II.
O Concurso festivo.

O boato da ereção da capela de Alegrete com a aldeia acessória, e de que os guarani da coluna Abreu se propunham a restabelecer ali a celebração ânua da paixão de Jesus Cristo, tinha divagado de estância a estância, de povoação a povoação, e chegado mesmo ás sete Missões do Uruguai, essas reminiscências verminosas, e padrões seculares do imenso poderio dos filhos de Loyola.

A par dessa noticia ia medrando a fama das proezas bélicas desse chefe, que por muitos anos teve a vitoria atada aos tentos do seu lombilho (8), e que restituiu heroicamente à lide marcial, sucumbindo na batalha de Ituzaingó, os títulos e honrosas condecorações que ela lhe havia brindado com mão generosa. A presença deste bravo e singelo filho do campo enlevava todas as considerações, e atraía todas as simpatias; tinha um absoluto domínio sobre todas as convicções, todos os alvedrios... Como é que se pôde definir esta preponderância deslumbrante, esta espécie de magnetismo, que é propriedade do guerreiro feliz, do homem que melhor sabe reprimir a comoção que sugere a presença do perigo, que sobrepuja a essa alienação rápida que surpreende todas as suas faculdades? Como essa superioridade moral, que tem o seu melhor apoio em factos de armas, e este ar de autoridade, que mais impõe a homens simples, do que aqueles que tem a razão mais cultivada?

Tais noticias puseram em movimento para o Passo-geral do Ibirapuitã numerosos bandos das diversas raças que habitam o departamento de Entre-rios até ás suas mais longínquas paragens.

Não era sem interesse ver uma família guarani em viagem. O seu chefe tinha a precedência na marcha, arriando (9) os cavalos que não eram montados; vestido mui singelamente, envolvida a cabeça em um pano, e cingindo a cintura o inseparável cheripá (10), do qual pendiam a guampa, e a faca encastoada em tangori, apresentava-se apto para voltear o laço e as bolas, e a disparar sobre a bagualada, quando vinha em um cordão incomensurável reconhecer os viadantes, ou sobre a avestruz, que fugia com carreira tortuosa, e equilibrando-se nas asas estendidas. A pouca distancia dele ia a china, mãe da família, cavalgando o animal mais pacifico da tropilha, e cobrindo-lhe a cabeça e as faces um lenço vermelho (panhoêlo puitam), que se confundia com a cor de seu rosto, mais aproximado à linha circular que à oval. Se tinha filhos pequenos, trazia-os engrupados sobre a montaria, e ligados a si com o cheripá; e na sua falta gozava das honras da garupa o perrito mais mimoso da numerosa matilha, que a seguia de perto, o qual se sustinha por si mesmo, equilibrado em sua posição, ainda que a cavalga dura galopasse, pelo habito que tinha de ser assim transportado. Pendiam aos lados do lombilho, e cruzando o assento por baixo do pelego, (11) a maleta e o possoêlo, que continham o vestuário festivo da família; e circundavam o colo esguio do paciente animal rolos de sogas, e enfiadas de porongos cheios de água para a jornada. 

Pejado de gelos, e impelido pelo violento e frígido Minuano (12), entrava o inverno despojando os salsos e as timboubas de sua linda folhagem, e amarelecendo os campos. No crepúsculo da tarde já não se ouvia o saudoso piar da codorna, que agachada na touceira de macega, evitava temerosa as garras do carnívoro chimango, que esvoaçava em redor. Já o garruto e vigilante quero-quero não estendia os seus voos muito além dos banhados, e posto num desplante quase vertical esperava atento o inseto com que se alimenta, e que nos lugares mais relvosos busca abrigo contra os arremessões do Minuano. O cope indiano de Alegrete já acolhia o soldado de formas atléticas do capitão Chico, e sua família; e à porta de sua cabana via-se cintilar com a luz do sol a temível lança, que tantas vezes se enristara contra os artiguenhos, e que aí se hasteava durante o dia, como o marcial distintivo de um lanceiro de Abreu. As famílias guarani, que ocorriam para a piedosa celebração da paixão do Redentor, tinham hospedagem aberta na aldeia: sendo-lhes comum o trabalho e aprestos que procediam esse ato, afim de preenchê-lo sem omissão da menor solenidade, sem deixar-se de observar escrupulosamente os preceitos tradicionais que lhe eram atribuídos, e que os velhos índios tinham bem impressos em sua memoria.

(8) Para bem compreender esta frase local, cumpre saber que nada assegura tanto o ânimo e pujança do cavaleiro do Sul, e firma sua esperança, como o laço que traz enrolado ao lado direito da garupa, e preso a atilhos de couro, a que chamam tentos.
(9) Palavra que equivale a arrebanhar, ou levar diante de si uma ponjão de animais cavalares ou vacuns.
(10) Pedaço de baeta de cor frisante, com que os homens do campo cingem o ventre, e serve para diferentes místeres.
(11) Pelego: pele de cordeiro que serve de cochim sobre o lombilho. Maleta: sacco estreito com dous fundos para conduzir fato. Posoêlo: alforges de couro cru, que se traz sobre a garupa.
(12) Vento do Oeste.

III.
Domingo de Ramos.

Era Domingo de Ramos [15 de Março]; e ao primeiro alvor do dia, depois da chamada militar dos lanceiros, dirigiu-se a companhia, de mistura com os seus hospedes, ao mato vizinho; e, passado algum tempo voltaram para a aldeã processionalmente e conduzindo cada um índio uma grande braçada de folhas da palmeira geribá, que servissem para colmar as cabanas onde se devia exercer o serviço divino durante a semana da paixão, e representar os últimos martírios do Salvador.

Este préstito misterioso, imitando a oração triunfal do Homem-Deus, quando se apresentou às portas de Hyerosolima [Jerusalém], executou-se silenciosamente e com regularidade militar: e os índios, envolvidos nas folhas, semelhavam massas moventes de verdura, que caminhavam para a aldeia por própria ação, a formar os recintos em que se deviam praticar aqueles atos expiatórios. Nesse dia, precedendo a bênção da cabana, que devia servir de santuário naquela solenidade, aí celebrou missa o capelão de Alegrete, anunciando à devota assembleia que ia começar a semana em que a cristandade comemorava a paixão de Jesus Cristo, e devia manifestar-se contrita por piedosos exercícios, e por atos expiatórios de penitencia.

Ao mesmo tempo que se construia a cabana onde se de viam observar os ofícios divinos, outra se elevava á pouca distancia dela para os exercícios flagelatórios daquelles que se dedicavam à penitência afim de aplacar a cólera da Divindade, e torná-la propícia, dilacerando com rudes açoites suas próprias espáduas, e suportando com estoica resignação os mais bárbaros tormentos.

Na tarde desse dia, e em reunião geral dos aldeões apresentaram-se ao seu chefe os que se propunham à penitência. Depois de uma breve elocução da mui acatada autoridade, enunciada no idioma guarani, em que significava quanto seria do agrado da Divindade (Tupâ) a pública e espontânea dedicação a esse ministério expiatório da mais exaltada crença, devido menos a um pensamento de dor moral e de eternidade, que ao de excitar a admiração por um robusto sofrimento nas torturas da flagelação e das macerações corpóreas, dispersou-se a assembleia, tributando, desde logo, deferências e homenagens aos candidatos à representação simbólica do Redentor, e contemplando-os como predestinados por uma inspiração celeste para exercerem as funções mais augustas e religiosas na celebração a que se dedicavam.

O numero dos penitentes era indefinido; mas, dentre eles o que mais duramente se atormentasse, o que mais sangue vertesse nas flagelações que se impunha, e que se sustivesse na mais absoluta abstinência, era o escolhido para representar naquela cena o papel de Jesus Cristo.

Os homens que se apresentavam para tais provas de um fanatismo sublimado ficavam logo separados de suas famílias e sócios; manifestando por este total isolamento que, como se considerassem eles os maiores pecadores, e os que por suas profanações às coisas santas, tinham incorrido na cólera celeste, eram indignos do trato humano em quanto se não purificassem por um modo, que aplacasse essa cólera, e assim fossem restituídos ao grémio dos fiéis.

IV.
A penitência.

Os dedicados a este ministério, que desde logo foram encerrar-se na cabana da penitência, começaram as suas flagelações na quarta feira de trevas. Nus da cintura para cima, ajoelhados, silenciosos, com a cabeça inclinada para o chão, a mão esquerda sobre o peito, e a direita empunhando um látego de couro, com ele descarregavam sobre suas próprias espáduas amiudados golpes com a mais rude impassibilidade, e sem o mais leve indicio de sentimento de dor. Dir-se-ia que estátuas de cobre por um oculto maquinismo figuravam aquele perene movimento.

Dia e noite eram os penitentes empregados neste descomunal exercício, que macerava o corpo, e atenuava as forças; privados de alimento, e assistidos de um servente, que era empregado em fazer sarjaduras nos lugares mais contusos do corpo para evitar a coagulação do sangue. O que via à roda de si o chão mais ensopado do sangue que vertia de suas feridas; o que mais cruamente rasgava as suas carnes, e que mais vezes caía por terra desfalecido, e inanido de alento, deixava entrever em seu aspeto, quando suas dores o consentiam, um ar de vanglória de ser talvez o predestinado para simbolisar o Homem-Deus em seus martírios e sacrifício humano. Ufano com esse pensamento, ele já se afigurava como o mais esforçado vencedor do espírito mau (Anhâ), e como o que mais valentes provas tinha dado do seu desprezo da dor, e por isso com direito à admiração e deferência dos da sua raça, que invejavam tão assombrosa dedicação. A vaidade supersticiosa, ante que a genuína fé cristã, dominava o espírito tão fraco e tão contraído destes filhos singelos da natureza selvagem, que, quando se não pudesse dizer que estavam no seu estado normal, com verdade seriam julgados como induzidos a erro, ou porque entrassem na sua primitiva civilização alguns elementos inspirados pelo fanatismo religioso da idade media, ou porque os sucessores dos jesuítas, abstraídos inteiramente daquela missão, de nada mais curassem que de neutralizar neles os atributos da razão para o melhor complemento dos seus fins. A tribo guarani, tão dócil, de um ânimo tão flexível, tão rica de suscetibilidades sociais, tocou o ponto do começo do seu aniquilamento da extinção dos filhos de Loyola. De sua transição do regime teocrático, austero, porém de absurda prática desses audaciosos doutrinários, para a dura servidão portuguesa, teve o principio a espantosa cadeia de males que o destino lhe lançou, e que a tem arrastado à ultima degradação e miséria.

O dia de quinta feira de Endoencas [19 de Março] foi ocupado nos aprestos para a procissão de enterro, que teria lugar no seguinte, O interior da cabana que servia de casa de oração estava coberto de preto, e sobre uma banqueta alta, construida de varas e revestida de pano branco, via-se colocado um crucifixo entre duas velas acesas, assentadas em castiçais de barro. Outras velas, engastadas em estacas de taquara, bordavam o recinto da casa, cujo pavimento era juncado de folhas de mata-olho; e ao lado direito da entrada via-se presa à parede uma guampa com agua benta e hissopo de cabelo para as aspersões dos que iam visitar o santo albergue, e oscular a peanha do crucifixo.

As imagens do Salvador e dos Bemaventurados, que formam o cortejo celeste, eram obra das mãos dos índios, qualquer que fosse a matéria de que para esse efeito se servissem, Sem as mais superficiais noções artísticas, só com a habilidade que sugere o natural discernimento, e por génio de imitação, fabricavam eles esses e outros muitos objetos com suportável execução, posto que nas imagens se divisassem impressas essas formas características do tipo indígena, essas atitudes e estilos que lhe são peculiares. Assim ó que a copia do gentil e nítido semblante de Santo António era formulada pelo fusco carão de um índio quinquagenário, com todas as suas feições e gestos agrestes, e o cabelo hirto; e o Divino Filho da Virgem de Idumeia, que se assenta nos braços do canonizado paduano, expondo idêntica fisionomia à de uma criança índia, tinha por vestes um ponche de seda orlado com fímbria de ouro, Destas imagens andavam sempre providas as maletas das chinas em suas viagens, e, como os Penates dos Romanos, eram expostas no interior dos copes,
quando os podiam construir para receberem as manifestações devotas da família.

Em ponto do meio dia, e ao rufo surdo de um tamboril coberto de pano negro, que se fez ouvir em todo o contorno da aldeã, começou a reinar o mais profundo silencio.

Tomaram as mulheres uma vestimenta negra, e soltaram os seus longos cabelos de ébano, em sinal de luto e dor, desatando-se de todos os laços sociais e místeres domésticos, e jazendo sentadas em um canto da cabana, imóveis, lastimosas, com as cabeças inclinadas para o chão, e no estado de um absoluto recolhimento moral. Nem o filho pequeno, que choramingava-lhe ao lado por falta de alimento, nem o cãozinho favorito, com o qual é tão meiga e complacente, e que exigia as habituais carícias, a retiravam desse estado de arrobo místico e exagerado ascetismo.

Uma cena tocante ocupou a espectação publica, à noite e depois da adoração do crucifixo, que se executou ao som de uma vozearia estrondosa e fúnebre, c com uma musica sepulcral. Prestada aos pés da banqueta que servia de sobpedâneo ao crucifixo, a índia que excedia as outras em longevidade, desferia um pranto lúgubre e horroroso à maneira das antigas carpideiras nos funerais, e balbuciava algumas palavras no seu idioma, entrecortadas de arquejos e soluços pavorosos. A horrível Sara americana, de guedelhas soltas, por entre as quais mal se enxergava um semblante engelhado e cadavérico, de mãos postas, e deslisando contorsões colubrinas para empregar mais veemência em suas vociferações, extasiava em redor de si uma multidão de povo, estupefacto de um quadro tão assombroso. Via-se nos índios a consternação, o enternecimento, e a contrição idiota que se deriva da impressão de objetos de terror, e não da comoção de uma consciência ascética; e mais de uma lágrima caía-lhe dos olhos misturada de soluços, que em pouco tempo se convertia em pranto geral e contagioso : e nos brancos, o característico do desprezo e escárnio, revelado por um gesto mofador. que de certo daria origem a algum desaguisado entre as duas raças sempre em rixa, sempre divorciadas, se por ventura os índios estivessem menos habituados a sofrer da parte dos brancos o trato mais ignominioso, e injuriosa zombaria pelos atos da sua crença religiosa. A compunção e piedade que a espantosa carpideira ganhava daqueles pelos seus lutuosos acentos e exclamação sibilina, perdia nestes por efeito do seu aspeto hediondo e horrível, e das suas gesticulações mímicas. Os olhos que lacrimosos contemplavam o símbolo do nosso resgate, em que
foi vitimado o Salvador, não podiam exprimir um pensamento doloroso, quando da cruz desciam descridos para a forma mosaica da tanajura secular.

Por um estudo continuo e aprofundado sobre a índole e compleição dos indígenas, e sobre suas acanhadas faculdades intelectuais, entenderam os jesuítas, seus primeiros civilizadores, que maior impressão fariam neles as ideias, que fossem representadas por objetos materiais, por ações físicas, que pertencem à possibilidade do homem, do que o pensamento moral, esse complexo de partes abstratas, que só compete ao domínio da potencia intelectual.
Queriam eles que os princípios religiosos falassem antes aos sentidos do que à imaginação; e é por isso que dos preceitos da crença, de que foram imbuídos os guarani, compreenderam estes que, materializada a divindade do Homem-Deus, ou transubstanciada em faculdade discernível, teve de achar-se na terra em luta com o poder infernal, que com este guerrearam as coortes celestes, vindo por fim a sucumbir o Filho de Deus, e a ser supliciado na cruz.
Preocupada cem estas insinuações erróneas, a deforme energúmena engrasava em sons inarticulados, monótonos roucos e lúgubres, algumas frases isoladas, que no próprio idioma exprimiam os essenciais atributos do Redentor, a dor dos seus martírios, e a cólera e indignação
pelo suposto triunfo do espírito das trevas, e a consumação do cristicídio. Nesta emfática e lastimosa apóstrofe ouviam-se repetidamente as palavras: - Christó opá anhundojára!.... omanó catu!! - (Cristo foi morto pelo demónio!.... sim, padeceu morte!!); e a elas seguiam-se vociferações horríveis, e exclamações descomunais, que produziam terror e espanto no animo dos índios que ali se achavam. Esta cena estranha, que ao mesmo tempo inspirava sentimentos opostos. de dor e de riso, durou algumas horas; substituída a carpideira, que a representava, depois de rouca e inanida de forças, por outra que tinha o mesmo devaneio de compungir o auditório, e dessarte fazer jus ao salário estipulado para semelhante exercício, o qual ordinariamente consistia em um trago de canha (copo de aguardente de cana) oferecido na pulperia do Pechincha, donde se retirava ébria e possessa de espírito mui diverso daquele que uma hora antes lhe ocupava a mente... Que transição !

Em toda a manhã de sexta feira [20 de Março] não se enxergou na aldeia pessoa fora de casa: parecia que havia sido abandonada dos seus habitantes e hospedes, ou que tivera lugar um daqueles movimentos imprevistos e rápidos, a que os Cossacos de Abreu estavam habituados para obstar alguma tentativa ou correria das hordas de Artigas. Talvez que se pudesse dizer que dominava ali o silencio dos túmulos, se os que se haviam dedicado desde quarta feira de trevas ao flagelo penitenciário suspendessem tão mortificantes provas de fanatismo brutal. O som compassado e surdo dos açoites, e o zunido rouco e monótono das cigarras, que, pousadas no espinilho (13), ainda sussurravam sua despedida aos últimos dias do moribundo outono, era o que ali revelava fracos sinais de lânguido movimento e frouxa vida.

Este exame foi cometido à autoridade militar do capitão Chico, que, para realizá-lo convocou a conselho os oficiais da companhia, os quais, ornados com as insígnias de suas graduações, dirigiram-se para a cabana expiatória, e aí aventaram esse caso com a consciência de austeros julgadores, que vão a decidir da existência de um grande culpado. 

Instituído, pois, um minucioso exame sobre provas tão barbaras, designou-se definitivamente o mísero paciente, sobre quem deviam ainda pesar novas e severas flagelações. Estremado ele dos seus consócios do martírio, deu-se por finda a penitencia, e, depois da retirada pesarosa dos outros candidatos à representação do Salvador, por não terem obtido a preferência, lançou-se-lhe uma tipoia (14) do cor negra, cingindo-lhe a cintura um cordão de couro da mesma cor.

Apenas anoiteceu, a repetição da scena das carpideiras excitou outra vez a curiosidade piedosa do povo guarani, que corria em grupos para o sitio onde ela ia reaparecer. O crucifixo, que se colocara sobre a banqueta da santa cabana, foi substituído por uma cruz preta, assentada em peanha de barro, e de cujos braços pendiam tiras de pano branco.

(13) Arbusto pertencente á família das Mimosas.
(14) Vestimenta talar, á imitação da antiga tunica, que as mulheres Guaranys trajam em casa.

V.
A Procissão de enterro.

Eram 10 horas da noite de sexta-feira. O tempo estava sereno, e o claro da lua mal podia penetrara densidade do vapor atmosférico, que, subindo, aglomerava-se sobre o circuito da aldeia, e caia em moléculas subtilíssimas humedecendo a terra. Ouvia-se ao longe os agudos acentos do jaguarete pousado no mais alto angico, e os rugidos do guarachaim em seu curso noturno.

Um sussurro inqualificável, e o separar-se para os lados em duas partes o povo que tinha afluído para o contorno da cabana consagrada ao santo ministério, denunciaram que ia aparecer a procissão do enterro, longo tempo esperada. Todas as vistas, todas as atenções convergiram para aquele ponto; e a presença acatada do chefe de Alegrete, trajado de aparatoso uniforme, impôs maior silencio do que aquele que devia sugerir a representação fúnebre de um ato, que os guarani profundamente reverenciavam.

Precedia ao préstito funeral uma cruz alta feita de taquaruçú, e hasteada por um menino envolvido numa vestimenta roçagante de cor preta, e cobrindo-lhe a cabeça um pano branco, sobre o qual assentava uma coroa de espinhos. Aos lados da cruz. e com os mesmos envoltórios, marchavam dois meninos com ciriais de taquara, em que ardiam velas de cebo. O exterior da procissão era guarnecido por duas alas de lanceiros, em traje de guerra, em numero de 50 a 60, empunhando ciriais semelhantes aos que iam aos lados da cruz que abria o préstito. No intervalo das alas movia-se lentamente, e com um ademan devoto e melancólico, uma numerosa fileira de meninas, vestidas de túnicas de pano branco, com os cabelos soltos, e coroas de espinho sobre suas cabeças, que se inclinavam para o chão: cada uma delas conduzia em suas mãos uma forma simbólica, e em miniatura, dos objetos que figuraram no martírio e paixão do Crucificado, e dos atributos físicos e morais, que se reuniram à sua essência divina. Viam-se nesta série, entre outros emblemas, o galo que com o seu tríplice canto revelou Pedro a culpa da sua estranha negativa, os trinta dinheiros que recebeu o discípulo traidor, o azorrague, a lança de Longuinhos [Longino], a escada do descimento, a coroa de espinhos, os cravos; assim também os peixes e pães reproduzidos nas bodas de Caná, a espada com que se armou contra o espírito das trevas, representado por um dragão de colo entonado, e as insígnias que lhe compeliam como o Rei profetizado da Judeia. Fechava a procissão um grupo de músicos, garganteando uns a ladaínha com uma voz chula e dissonante, e outros fazendo guinchar com sinistro alando algumas rabecas, obra de suas próprias mãos ; levando os que iam na frente deslocadores, e pregados no dorso, grossos cartões de musica, representada por grandes notas sobre pedaços de couro.

Como uma parte adicional da procissão seguia-se logo outro grupo armado de lanças, em cujo centro se distinguia, com as mãos atadas, diadema de espinhos na cabeça, e túnica preta, o miserando penitente, sobre quem tinha recaído a escolha para simbolizar o Homem-Deus, e que se pavoneava de que sua constância e sofrimentos assombrosos lhe dessem a preferência de apresentar-se em holocausto e vitima propiciatória ao Criador para remir a criatura. Com passos mal seguros, e aspeto aonde se vislumbrava entre os sinais de rudes tormentos o entusiasmo supersticioso de ter chegado a merecer a atenção publica, e a especial veneração dos da sua raça, pela firmeza e resignação com que se houve na severa flagelação de que saíra, caminhava o martirizado representante do Salvador, a quem os da escolta que o cercava não poupavam azorragadas, violentos arremessões, bofetadas e insultos ignominiosos.

Com este grupo ia um pregoeiro que, sempre que o prestito suspendia a sua marcha, apontando para o martirizado, e com atitude pujante, exclamava com detestável pronunciação a forma sacramental— Ecce homo —. Ouvindo esta exibição, o misero preconizado por um doloroso esforço estirava o corpo, elevava a cabeça (querendo sobre sair ao grupo que o circulava, e em um desplante ridículo, trabalhando para arremedar um gesto bíblico, manifestava a enfática alucinação de que se achava dominado por haver atraído a vista dos espetadores, e persuadir-se que os tinha ensopado em sentimentalismo religioso, o abismado em profunda consternação. Pelo contrario, se pelos gestos e sinais externos podem-se discernir os sentimentos íntimos, os brancos com um sorriso mofador revelavam um pensamento de dó por tão miseráveis apreensões e preconceitos, e os índios faziam só apreço do desgarro do energúmeno, e da gesticulação horrível com que ele suportava os golpes do azorrague.

Após este grupo, e pondo fecho a todo aquele espetáculo, ia uma mulher desfalecida nos braços de um índio, que representava a mãe do Crucificado, sustida pelo Evangelista que assistiu à sua paixão. Tinha por séquito uma multidão de mulheres, que levavam ao seu lado seus filhos menores de mãos postas, e que caminhavam vagarosamente com luzes nas mãos lavadas em prantos, e soltando arquejos e soluços. Em presença desta cena caíam de joelhos os índios que a observavam; e num arroubo extático e devoto batiam nos peitos com veemência.

Depois de um giro prolongado e vagaroso, que durou até a meia noite, dissolveu-se a procissão como por um encantamento, tomando cada comparsa diferente direção confundindo-se na massa dos espetadores.

Conclusão.

Ao primeiro clarão da manhã de sábado [21 de Março], ouviu-se o tambor da aldeia, acompanhado de pifanos, anunciar a aleluia em rufos descompassados e em dissonantes assobios. A cabana da penitencia tinha desaparecido, e em seu lugar hasteara-se um poste elevado, donde pendia um mal formado manequim, figurando o traidor Escariota, que tinha vendido o Divino Mestre; o qual arrancado de sua posição pelo laço de alguns cavaleiros, em poucos momentos foi reduzido a mil pedaços.

Ao tambor, que não cessou de rufar, congregaram-se vários tangedores de viola e rabeca, e em breve tempo o mais desentoado alarido de mistura com festivos hosanas difundiu-se da aldeia à capela de Alegrete; e esta retumbante folia, com um séquito numeroso de mulheres e crianças, trajados de gala, e em cujos fuscos semblantes reluziam a alegria e o contentamento, corria as ruas proclamando a aleluia e recebendo a espórtula de tão festivo anúncio. Depois de feita a coleta, cujos contribuintes eram retribuídos por uma ruidosa fanfarra, o bando folgazão recolheu-se aos seus copes, conscienciosamente pago de ter, segundo as regras e preceitos tradicionais da sua primitiva associação, desempenhado com o possível escrúpulo a celebração da paixão de Jesus Cristo.

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Fonte
José Joaquim Machado de Oliveira, "A Celebração da Paixão de Jesus Christo entre os Guaranys (Episódio de um Diario das campanhas do Sul)", in: Revista Trimensal de História e Geographia, tomo IV (2.ª edição), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1863, pp. 331-349 [nota: 1.ª edição em 1842]

A transcrição foi feita modernizando a ortografia e com anotação cronológica tendo por base a data de 22 de Março como o Domingo de Páscoa em 1818.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Medalha da Campanha do Uruguai (1811-12)


Medalha da Campanha do Uruguai (1811-12). Esta é uma das mais interessantes e desconhecidas medalhas luso-brasileiras por diversas razões. 

Por decreto de 25 de Setembro de 1822, apenas duas semanas após a proclamação de independência, D. Pedro I autoriza que o emblema dado aos participantes da campanha do Uruguai de 1811/1812 (que os historiadores hispanófonos chamam a 1.ª Invasion Portuguesa) seja atualizado em medalha, com a adição de um cruz em torno do círculo original de 1813 e pendente de fita amarela. 


O emblema original
Na prática, devido ao pedido dos veteranos, o emblema que foi originalmente decretado pelo Príncipe Regente D. João a 20 de Janeiro de 1813 passa a poder ser utilizado como medalha pendente do peito. O decreto do emblema de 1813 é da Gazeta do Rio de Janeiro n.º 17, de 27.2.1813.


O emblema era usado no braço direito, dourado para os oficiais generais, de prata para oficiais e de estanho para os sargentos e praças do Exército Pacificador do Sul, comandado pelo Conde do Rio Pardo, D. Diogo de Sousa. Esta força chegou a ameaçar Montevideu, mas depois retirou, em função de um tratado com Buenos Aires.


Interpretação digital do desenho original

A mais antiga medalha brasileira?
Tendo em conta a data do decreto de 1822, poderemos considerar esta a mais antiga medalha militar brasileira pós independência e, não só isso, a primeira condecoração honorífica brasileira em termos cronológicos, precedendo as várias ordens que são apenas legisladas a 1 de Dezembro de 1822.

Ainda que na prática seja apenas uma reforma legal, o tempo da sua criação coincide com as primeiras semanas da independência e uma forte aposta na valorização das forças imperiais brasileiras, agora mais que nunca dada a separação dos países.

reverso

A medalha a que apresento é da coleção Coleção Leone Ossovigi, do Museu Imperial de Petrópolis e pode ser vista no sítio do Museu.

Uso da medalha
Em seguida, dois grandes militares brasileiros que portaram a medalha, junto à medalha do Barão da Laguna, para as campanhas de 1811 a 1828. De notar que de acordo com a legislação da medalha Barão da Laguna, criada meses depois em 1823, o uso desta primeira, actualizada em 1822, seria desnecessário se o militar obtivesse a segunda. No entanto, ou a lei foi alterada, ou o uso era o das duas medalhas.

Em qualquer dos casos, faz sentido o uso das duas, na medida em que foram campanhas com implicações e condicionalismos bastante diferentes. Da mesma forma, representaram dois momentos militares na guarnição da província do Rio Grande.


José de Abreu
Usa a medalha do Uruguai, em prata, e a do Exército do Sul.

Sebastião Barreto Pereira Pinto
Usa a medalha do Uruguai, dourada (atualizada ao seu posto à altura do retrato), e a do Exército do Sul, assim como 3 placas de ordens imperiais brasileiras (Rosa, Cruzeiro e não identificada).
As condecorações brasileiras costumavam ter um tamanho reduzido, face à norma, o que fica aqui demonstrado.

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Bibliografia
ESTRELA, Paulo Jorge, Ordens e Condecorações Portuguesas 1793-1824, Lisboa, Tribuna da História, 2008.