domingo, 6 de abril de 2025

Na Estrada de Montevideu



No final de 1814 foi mandada aprontar uma divisão de voluntários, a ser composta de pouco menos de 5000 militares das três armas, com o objetivo de intervir no sul do Brasil. Este blogue é uma humilde contribuição para o conhecimento da história da Divisão de Voluntários Reais do Príncipe, e depois d'El-Rei, entre 1815 e 1824, assim como das tropas da Capitania do Rio Grande.
A campanha de 1816 foi um esforço conjunto de mais unidades do Exército do Brasil e de Portugal num teatro de operações que ia desde a costa atlântica à costa do rio Uruguai, com quatro colunas distintas.
Apesar de adotar uma perspetiva portuguesa do conflito, este blogue procura também a perspetiva oriental a fim de traçar a mais fiel possível descrição dos acontecimentos desta guerra.

AS BATALHAS
As ações, sítios e batalhas da campanha, com ligação aos artigos disponíveis sobre elas, com ênfase forte nos memorialistas.
AS BIOGRAPHIAS
Em constante atualização, aqui pode encontrar ligações à biografia de alguns dos militares, portugueses e federais.
OS MOMENTOS
Os artigos sobre momentos que não envolvem combate.
OS VOLUNTARIOS
Listas e caracterização dos militares da Divisão dos Voluntários Reais.
AS TÁCTICAS
Os artigos predominantemente da análise tática militar.
AS MEMORIAS
As vozes dos combatentes e testemunhas dos eventos.
UMA BIBLIOGRAPHIA 

1815 | 1816 | 1817 | 1818 | 1819 | 1821 | ... | 1823

Embarque da DVR a 29 de Maio de 1816, na Praia Grande (J. B. Debret)

sábado, 5 de abril de 2025

Bento Manuel (Gustavo Barroso, A Guerra de Artigas, 1930)


 

““Sái logo ao encontro de Artigas, que vinha em marcha 
com 600 homens de cavalaria, obriga-o a retroceder e persegue-o”.”
(Rio Branco – Efemérides)

Naquela luminosa manhã de maio, em frente ao acampamento do exercito brasileiro do Quaraim, estava formada uma extensa linha de cavalaria: quinhentos e sessenta homens escolhidos das milícias do Rio Grande e da legião de São Paulo. Comandava-os o tenente-coronel Bento Manoel Ribeiro e, lentamente, o general Curado passava-lhes revista.
Era um homem alto, espadaúdo, forte. Nariz aquilino. Queixo proeminente. O alto bicornio a três pancadas. Muito firme na sela, muito espigado, apesar dos seus setenta e um janeiros. Nascido nos sertões goianos de Jaraguá, o conde de S. João das Duas Barras tinha a rijeza peculiar dos vaqueiros do nosso áspero interior. Veterano das campanhas platinas, seus dias de guerra contavam-se por vitorias, e seu nome era o terror dos orientais desde a batalha de Catalán.
Curado examinou os soldados um a um. Seu olhar percorria rápida e agudamente o individuo, as armas, o cavalo, os arreios. Depois, verificou o estado da cavalhada estendida no coice da coluna. A impressão de tudo foi favortavel. Voltou à testa da força e fez um sinal ao comandante. Bento Manuel aproximou-se.
─ Vá, disse o general, passe o Uruguai e encrave todas as baterias dos gringos!

***

Soltando vivas entusiastas, o destacamento partiu rumo à fronteira. Dois dias após, na noite de 14 de maio, atravessava o rio sem ser pressentido pelo inimigo, na Vuelta de San José, e penetrava no território de Entrerrios. Ao alvorecer o dia seguinte, galopando pela margem direita do Uruguai, a cavalaria brasileira avista uma força contraria que se desdobra em escalões pelas coxilhas. Os paulistas espalham-se em atiradores. Os riograndenses preparam as lanças. São os entrerrianos do coronel Gorgonio Aguiar, que defendem a bateria da Calera de Barquin, assestada num teso e destinada a bater o passo do rio. Artigas pretendia com essas baterias impedir a esquadrilha de Sena Pereira de subir o Uruguai.
O clarim brasileiro, ao amortecerem as descargas dos atiradores que vão recolhendo ao grosso devido ao avanço do inimigo superior em numero, dá o sinal de carregar. As duas linhas de cavaleiros enovelam-se, tapesapeando as lanças e sabres. Gritos, uivos, pragas! E o valente Bento Manuel, no meio do entrevero, a dar ordens e a bater-se como um simples soldado. Sem campo de tiro livre, a bateria inútil jaz no alto da Calera. Depois de uma hora de resistência, os artiguenhos afrouxam a luta e dispersam-se, lanceados e tiroteados. Gorgonio de Aguiar entrega a espada ao chefe sorocabano. E os guaranis que guardam a nossa cavalhada preparam uma balsa para levar a artilharia contraria ao território do Rio Grande.

***

Após um descanso de horas, a carneação para o almoço, o tratamento dos feridos e o enterro dos mortos, de novo o destacamento audaz continua a marcha vitoriosa. Entardece quando outra fila de cavalaria corôa as coxilhas ribeirinhas ao Uruguai. São os soldados do tenente-coronel Faustino Tejera que defendem a bateria de Perucho Berna, feita com canhões tomados outrora a Balcarce. Novamente se entestame topam as cavalarias a arma branca. Os entrerrianos são outra vez batidos lamentavelmente. E outras balsas levam as peças artiguistas para a margem brasileira.

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Á noite, Bento Manuel acampa na bateria abandonada no Passo de Vera, cujos canhões encrava.

***

Mal nasce o dia 16, está a cavalo. O toque de ensilhar foi dado antes do sól. E a força vitoriosa galopa para a villa do Arroyo de la China, que hoje se denomina Concepción del Uruguay, base de operações de Artigas. Por volta de onze horas da manhã, entra por ela adentro. Seus clavineiros apêam-se, correm ao cais e apoderam-se de barcos atracados, cheios de munições de guerra e bôca. Os lanceiros ocupam todas as entradas da povoação. Nisto, vêm dizer-lhe que, a marchas forçadas, Artigas em pessôa corre em socorro da vila. O clarim toca logo chamada ligeira; depois, ensilhar. Já a cavalo, os oficiais  olham espantados para Bento Manuel. E ele, sorrindo:
─ Vou bater Artigas em campo raso!
***
O encontro deu-se a pequena distancia do Arroio da China. Os seiscentos cavaleiros que o ditador trazia não resistiram ao embate dos centauros que Curado escolhera e revistara para aquela feliz expedição. Em meia hora, eram debandados em todas direções, perdendo Artigas até o seu próprio estandarte!
Bento Manuel perseguiu-o umas três leguas.

***

Uma semana mais tarde, em frente ao acampamento do exercito brasileiro, o conde das Duas Barras passava de novo revista aos guerrilheiros que regressavam do audacioso reide. Bento Manuel, acompanhando-o por entre as fileiras perfiladas, dava-lhe conta do seu êxito:
─ Trouxe oito canhões, treze barcos, trezentos e sessenta e seis prisioneiros, quinhentas espingardas, dezoito carretas com munições e despojos, duzentos cavalos, um estandarte e somente faltou…
Deteve-se com um sorriso enigmático nos lábios. O velho Curado, que lhe conhecia de sobra o pendor para a bravata e o exagero, espicaçou-o:
─ É verdade, tenente-coronel, falta uma coisa que você não trouxe e estou adivinhando…
─ Pois diga, general.
─ Foi Artigas…
─ Isso mesmo. Mas eu só não o trouxe, porque…
─ Por que? indagou Curado.
─ Porque ele fugiu…

Fonte
BARROSO, Gustavo, A Guerra de Artigas, s/l, Ed. Getulio M. Costa, [1930]. pp. 109-116