terça-feira, 22 de junho de 2021

Fiel, natural e circunstanciada exposição dos acontecimentos da noite de 23 de Junho de 1821 (João Crisóstomo Calado)


Resultado da revolução liberal do ano anterior, 1821 foi um ano de grandes perturbações políticas em todo o império e especialmente no Brasil, que albergou a corte portuguesa até Abril desse ano, após 13 anos de permanência. Ainda que integrado no Exército do Brasil, a Divisão de Voluntários Reais, que ocupava Montevideu (e Colónia do Sacramento) há já 4 anos, era ainda um vasto corpo militar que até o ano anterior estava destacado do Exército de Portugal, com vagas asseguradas no seus respetivos corpos de origem; isso já não acontecia em 1821, apesar das promessas prévias. 

Essa situação incerta, em conjunto com a propagação dos ideais constitucionalistas vindos da metrópole portuguesa, levou a um período de instabilidade e revolta política que afetou fortemente a disciplina e coesão militar da Divisão. 
Com o levantamento de alguns oficiais em 20 de Maio, liderados pelo coronel Claudino Pimentel, que entre outras coisas obrigou o tenente general Carlos Frederico Lecor a jurar previamente a constituição, iniciou-se um período revolucionário, com grande ação dos membros do Conselho Militar e a geral politização de todas as classes. As divisões que resultaram viriam a ter grande influência posteriormente na independência do Brasil, com este processo na recém-criada Província Cisplatina (será declarada formalmente a 31 de Julho de 1821) a assemelhar-se mais a uma guerra civil que propriamente uma independência modelo.

O texto memorialista que transcrevo é um pequeno exemplo das muitas situações que ocorreram neste autêntico período revolucionário em curso e centra-se no levantamento do 2.º Regimento de Infantaria da Divisão na noite de 23 de Junho de 1821. De sua própria volição, o regimento, aquartelado fora da praça de Montevideu, no Seco, um pouco a norte da praia do Buceu, pegou em armas com a inabalável intenção de se dirigir em massa a Montevideu a reclamar direitos.
O texto resulta da versão dos factos pelo coronel João Crisóstomo Calado, comandante do regimento, que tentou controlar a situação, articulando com o capitão general Lecor a melhor forma de resolver a delicada situação. A transcrição foi feita a partir de um manifesto impresso publicado no Rio de Janeiro e que pode ser encontrado no arquivo online Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo aqui.

A ortografia foi modernizada, com pequenas notas explicativas, assim como conversão de medidas antigas portuguesas, nomeadamente a toesa, que converti para o sistema métrico em 1,98 m. A acompanhar o texto, publico ainda uma parte do mapa "Planta dos Subúrbios de Monte-Video", referente a Maio de 1826, desenhado por Adolfo António Frederico de Seweloh e com base em levantamento feito pelo coronel Jacinto Desidério Cony, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e que pode ser visto aqui. Neste mapa, que pode ser visto em cima, destaquei as localizações que são referidas no texto, para melhor ilustração da geografia.

* * *

Fiel, natural e circunstanciada exposição dos acontecimentos da noite de 23 de Junho de 1821, pela irregular e indiscreta reunião do 2.º Regimento de Infantaria da Divisão de Voluntários Reaes d' El-Rei em seu próprio acantonamento do Seco.

O coronel João Crisóstomo Calado, chefe deste regimento, aliás tão benemérito pelos seus serviços, e a quem ele não deixou um só instante de prestar todo o desvelo, e cuidados, que lhe prescreviam os seus deveres, e amor de seus próprios soldados, sem dúvida estimaria sepultar no silêncio tal acontecimento, sufocando a perene mágoa que lhe assiste, se este, além de ser tão público, não fosse objeto de transcendência quanto à sua honra , e quanto à disciplina do mesmo regimento, só levado a tal excesso por espírito de vertigem imprevisto, fruto das circunstâncias azedadas por quotidianos sofrimentos: eis a razão porque aparece à luz pública a presente exposição, que desfazendo ilusórios boatos, fará brilhar a verdade , mostrará com clara luz o erro, e falta; porém porá em seguro a honra do mesmo coronel, e removendo calúnias, que se possam atribuir ao seu Regimento, ou por ignorância do facto, ou por má tenção, não deixará em menos preço o conceito militar, de que é digno tal corpo.
    Não sendo por tanto o seu fim senão narrar a verdade, se limitará ao acontecimento, sem levantar o véu, que poderia sendo rasgado, descobrir estranhos motivos, e dar margem a dissensões sempre perniciosas, e de que he alheio o seu caráter, e sistema; assim, só apontará as reflexões devidas, e que se achem implícitas na sua exposição, protestando, do modo o mais sagrado, não ser da sua mente querer ofender a pessoa alguma, mas sim só pugnar por si, e pelo seu regimento, como lhe cumpre.

Aconteceu que, pelas sete horas e meia da tarde [1930h] do mesmo dia 23, tratando o referido coronel de diferentes objetos de policia para o seu regimento com o ajudante José Joaquim do Amaral, em virtude de certas participações, e reflexões, fez o coronel chamar o capitão do estado maior, a quem recomendou nova, e expressa exação nas revistas ordenadas no regimento. Pouco depois das oito horas, voltou o mesmo capitão do estado maior, e deu parte que tudo se tinha cumprido, e sem novidade. Após disso se retirou, e havendo-se despedido o ajudante, ficou só o coronel no seu próprio quartel.
    Às nove horas [2100h] pouco mais ou menos, comparece o sargento da 6.ª Companhia Manuel José Lopes, e dá parte que as companhias 3.ª 4.ª 5.ª e 6.ª se achavam armadas, e fora dos quartéis; pouco depois, chega o capitão do estado maior dá a confirmação oficial à mesma parte. O coronel se veste arrebatadamente, e vai apresentar-se ás companhias, alheio inteiramente do que pretendessem por tal desatino; chama os sargentos para avisarem aos senhores oficiais a comparecerem imediatamente; a intimação desta ordem não era precisa em geral, pois já alguns se achavam presentes, clamando pela boa ordem.
    Apenas o coronel é visto, e reconhecido dos soldados, rompem estes gritos: “Meu coronel V[ossa]. S[enhoria]. perdoe, porém nós queremos ir a Montevideu para que se paguem nossos soldos segundo o prometimento, que se nos fez na madrugada do dia 20 de Março: a estas vozes, tendo o coronel respondido que estavam loucos, segundam: “Não estamos, meu coronel, V. S. e os senhores oficiais que queiram, hão de acompanhar-nos: nós não demos parte deste acontecimento a V. S., porque o não queríamos ver em Conselho de Guerra, e a nos todos não nos hão de meter; e os senhores oficiais, assim como nos convidarão na noite de 20 de março, nós os convidamos agora”. Apesar de ser crítico o momento de interpor com firmeza a voz de autoridade, o coronel, fiado na disciplina do seu corpo, e respeito dos soldados, que mostravam amá-lo quer fazer-se obedecer, e dissolver uma reunião, filha do delírio, chama os sargentos, e intima a ordem para que os senhores oficiais sem demora fizessem entrar as companhias no seu dever, e as recolhessem nos quartéis: a 3.ª companhia, dócil à ordem, se encaminha a cumpri-la, porém as outras desgraçadamente se conservam firmes, e não obedecem, Passa então o coronel a tentar os meios da persuasão, e conciliação. Determina aos sargentos que formem as companhias para ele ir falar-lhe a cada uma de por si, o que executa, procurando com razões fazê-los capacitar, que deviam sossegar, obedecer, e entrar nos quartéis, que ele coronel se fazia cargo das suas queixas, e representações, que não era aquela a maneira cordata de as fazerem, anti militar, imprópria, e indigna de tão bons soldados, com todas outras reflexões próprias do assunto: neste momento, de uma das companhias rompem os gritos: “Vamos aos Granadeiros”; de outra: “Meu coronel, V. S. não tem que recear o sucesso, esta deliberação é de toda a Divisão, quando nós chegarmos a Montevideu, teremos as portas abertas, e os nossos camaradas da guarnição á nossa espera, e nós ternos que ir pela artilharia, e cavalaria”. Declarada à geral inteligência, e mostrando-se ser este ato tão premeditado, e serio, reflexiona o coronel que é preciso variar de expediente, sendo inúteis, e infrutíferos os meios já aplicados, e que é forçoso ceder por hum momento à torrente, para depois regular a sua direção; assim grita: “Senhores, iremos onde queiram, porem primeiro quero saber se me obedecem”. Respondem por aclamação: “Sim, senhor, faremos quanto V. S. mandar, porém queremos ir a Montevideu”. Aproveita o coronel esta pausa, e manda ao Ajudante José Joaquim do Amaral que apresentando-se no quartel das duas companhias de Granadeiros que distará 72 Toesas do Seco [c. 143 metros], contivesse a ordem e precaucionasse maior desatino, caso ali já lavrasse o alvoroço; e ordena ao major José António Franco passe rapidamente a Montevideu, e inteire de tudo ao ilustríssimo e excelentíssimo senhor capitão general barão da Laguna [Carlos Frederico Lecor, 1765-1836], o que não tinha antes praticado, por não remeter uma participação de tanto dissabor, em quanto julgava estar ao seu alcance remediar o mal, não sendo tão pouco, a seu ver, acertado que se alvoroçasse Montevideu àquela hora da noite, sem absoluta precisão; pois eram já 11 horas [2300h]; e é certo que o referido major falou a S. excelência às 11 e três quartos [2345h].
    Passa depois o coronel a ponderar aos soldados, que deviam ir em ordem, e levar as bandeiras do regimento: nisto é obedecido de bom grado. Encaminha-se pois ao quartel com duas companhias a executar o que havia proposto, e bem que ali com motivos prolixos e frívolas razões se demorasse meia hora, se conservam era silencio e sossego os soldados. Enfim, dois oficiais tomam as bandeiras, e marchando para a Cidadela se reúnem ali às duas companhias. Postas em formatura, tenta outra vez o coronel persuadir aos soldados quanto era melhor entrarem nos quartéis, e ali esperar que S. excelência o senhor capitão general fosse ouvir as suas representações, que ele como seu Chefe lho prometia, e obrigava a consegui-lo do seu general. Bem entendido o coronel que ainda não era o momento da saudável crise, mas não quis omitir a menor coisa, para descargo do seu dever: assim não lhe foi estranha a resposta do seguinte grito: Não, senhor, queremos ir a Montevideu por nossas pagas”; faz-lhes entender que era impraticável serem pagos daquela maneira, como pensavam, que nem havia dinheiro, nem estava á disposição de S. excelência: resposta: “A Divisão está paga em dia pelo Estado, e o dinheiro deve estar em Montevideu”. E é nesta ocasião que novamente remete outra parte a s. excelência o senhor barão da Laguna pelo ajudante José Joaquim do Amaral rogando-lhe encarecidamente se apressasse a ir encontrar o Regimento: assegurando-lhe ao mesmo tempo que ele Coronel se faria forte a detê-lo em ordem. Outrossim, que sua excelência devia persuadir-se que só a sua presença poderia evitar que o regimento entrasse em Montevideu; onde achando-se de acordo com os outros corpos, poderia promover funestos desacertos, em menos cabo de todo o respeito ás autoridades, em menos preço da honra nacional: que sim sua excelência tomasse na praça as medidas que julgasse a propósito, porém sem demora, ou falência fosse encontrar, e falar ao Regimento. Contudo, podia assegurar a sua excelência que os outros corpos não seriam tocados pelo do seu comando, que este se prestaria respeitoso a receber a pessoa do senhor capitão general; e que finalmente a marcha se fazia pelo caminho do cordão, visto ele a não poder estorvar. Isto era uma hora da noite, e é certo ter o ajudante faltado a sua excelência à uma e meia.
    Tenta depois o coronel mostrar aos soldados o absurdo da sua opinião, e persuasão, porfiam em marchar adiante. Como faltasse a 1.ª companhia, lembra-se este incidente para os fazer demorar; debalde foi, porque respondem: “Já está avisada”. Assim, sem poder evitar, o coronel marcha com as seis companhias para o ponto onde costumava reunir o regimento, quando era mandado vir a Montevideu [1] [Este lugar distará da Cidadella 139 toesas [cerca de 275 metros]. Aí procura entreter o tempo que pode em prolixidades de formaturas, até que se reuniu a l.ª companhia: lembra então que faltam a 2.ª e 8.ª, e que as ia fazer avisar, o que executa pelo capitão da l.ª de Granadeiros Salustiano Severino dos Reis com expressa recomendação para que o major Francisco de Paula Esteves conservando-as formadas o esperasse, fazendo observar toda a possível ordem. Tendo decorrido alguns minutos, se põe o coronel à frente das sete Companhias, e procurando o caminho o mais extenso, se dirige ao quartel da 2.ª e 8.ª companhias, que distará 130 Toesas do lugar aqui citado [c. 257 metros], e com tudo, seria já uma hora e meia, quando se efetuou a incorporação das duas Companhias com o major Esteves, que ali o esperava, conforme a ordem comunicada: a este determina que forme o regimento (*) [Existia este só com nove companhias, porque a 7.ª ainda se achava a bordo da fragata Tétis, tendo só desembarcado duas das 3 que já estavam a bordo para seguirem com o regimento para o Rio de Janeiro.] por ordem de companhias em um largo que fica entre o Campo do Silva; e o Seco (**) [Este sitio distará de Montevideu 2822 toesas. [cerca de 5588 metros] segue pois a marcha em razão dos repetidos clamores dos soldados, que já não era possível rebater: o coronel a efetua por um desfiladeiro, caminho só de escolha para ganhar tempo; e vem colocar o regimento junto do Saladeiro do Pereira, da outra parte do caminho, onde é o quartel de uma companhia do 1.º Regimento de Cavalaria, que felizmente não foi inquietada. Foram tantas as delongas, que só ás duas horas e meia aproximadamente, é que o regimento se formou no citado sítio, que pouco mais ou menos distará 264 toesas do Silva [c. 523 metros].
    Não tinha já o coronel oficial algum, que pudesse dispensar para dirigir a sua excelência o Sr. Barão; e como instava a necessidade, manda o seu próprio criado para pessoalmente vir ter com sua excelência, e instar quisesse apressar-se, pois haviam ultimado os esforços para conter, e demorar a marcha, e resolução do regimento; que ele coronel tinha esgotado todos os recursos para sossegar os Soldados, que ainda ia a tempo de o escutarem com decoro, que a não aproveitar os momentos, era inevitável a entrada em Montevideu o que seria o pior dos males, e a maior desgraça. Chega depois de poucos momentos o ajudante Amaral, tendo já falado com sua excelência em Montevideu, a quem de novo faz marchar na mesma diligencia. Progredia a marcha para os subúrbios da Praça. Porém graças ao delineado estratagema, só às três horas e três quartos [0345h] formou no sitio denominado Tres Cruces, junto á Panadaria de Morales, aquartelamento da artilharia da Divisão, que distará 497 toesas [c. 984 metros] do quartel da 1.ª companhia de cavalaria acima referida, e fica a meio caminho de Montevideu ao Seco.
    Dada a voz de alto, e preenchidas as formalidades usadas, pensa o coronel fazer o último esforço para se opor à aproximação da Praça, que era já o mal eminente. Reverte-se da energia de chefe e lança mão do encanto, que embeleza os corpos filhos da disciplina, quando o chefe é amado e respeitado: “Soldados! Quero e ordeno que aqui se a guarde o senhor capitão general: eu castigarei o primeiro que me desobedeça. A junção com outros corpos não é agradável neste caso um obre como queira, e vós como julga o vosso coronel, que é vosso verdadeiro amigo”. Ficam firmes em coluna, e não replicam. Dá-se ordem para fumarem, e conservarem-se sem rumor, e assim se conservam até depois das quatro horas [0400h] em perfeita docilidade. Era muito para delicadas circunstâncias, e o mais que podia conseguir qualquer Chefe depois dos primeiros sucessos.
    Seriam quatro e um quarto [0415h], quando chega o secretário militar, o coronel Miguel António Flangini. Em razão da névoa e escuro, é equivocado com o senhor barão da Laguna, e o coronel dá a voz de sentido que é obedecida como voz de comando em parada. Conhecida porém dos soldados a equivocação rompem de novo os gritos: “Vamos a Montevideu; sua excelência não vem aqui”. Dá-se a voz de silêncio, e então o coronel Flangini declara aos soldados, que o senhor capitão general tinha já sabido da Praça pelo portão novo, que estava em caminho, e que necessariamente se tinha desencontrado. Esta fala é escutada com respeito, e decoro; porém clamam logo adiante. Toma então o coronel a frente do regimento, e com firmeza, e inteira resolução faz entender que castigaria o primeiro que falasse, e em segunda manda ao capitão da 2.ª companhia, António José de Carvalho, que se adiantasse da coluna a esperar a sua excelência, para o acompanhar, e dirigir ao lugar, onde o Regimento tinha feito alto. Chega finalmente sua excelência o senhor capitão general. Tudo se conserva firme em coluna como estavam, e guardam silêncio.
    Determina sua excelência, que saiam os primeiros sargentos, e 1 soldado por companhia a falar-lhe. Os Soldados trepidam, receiam sair fora da formatura: nenhum quer fazer cabeça na representação. Em virtude disto, o coronel dá a voz, que saiam os soldados da direita das companhias. É obedecido, e vem apresentar-se a sua excelência que lhes faz a interrogação acerca do que querem os seus camaradas: respondem que querem os seus pagamentos. Um dos sargentos se excede em menos preço do respeito devido a sua excelência, referindo com aspereza, e sem comedimento injustiças sofridas em promoções, falta de soldos, e outras queixas, que sendo proferidas de modo indevido, o coronel toma o arbítrio de o mandar calar, o que não tinha praticado imediatamente, em atenção a estar perante o Sr. capitão general, que o escutava, e a quem se dirigia; mas não era lícito tolerar desatinos a infinito sem os estorvar.
    Em circunstâncias tais, julga o coronel dever satisfazer a todo o o corpo, e pede a sua Ex.ª queira entrar na coluna, a fim de que todos os Soldados pudessem ouvir, o que tivesse a dizer-lhes. Manda abrir intervalos, e pôr as armas ao ombro, o que é executado, como se fora em parada regular. Passa sua excelência ao centro da coluna, e pergunta aos Soldados de que se queixavam, e convida-os a que falem. Repetem as queixas de faltas de soldos, e acrescentam que em outras capitanias se havia dado uma gratificação à Tropa, e que nesta pelo contrário, tendo-se-lhe prometido pagar, nem isso tinham obtido. Que tinham muito frio, que estavam sem mantas, e vivendo em um quartel sem tarimbas, e deitados pelos chão muito húmido, o que era mui penoso e prejudicial à saúde, que não podiam resistir ao desarranjo, em que viviam com metade de um pão (*) [Como recebiam um dia pão, e outro farinha, por isso contam meio pão por dia.] por dia, e péssima ração de carne, por ser tão magra, se apegava ás paredes, que os trapos com que se cobriam, e esteiras em que dormiam, as tinham destruído em que consequência de embarcarem para o Rio de Janeiro, como se tinha feito publico por ordem, não se tendo efectuado, por sua Ex.ª o estorvar, apesar de já estarem embarcadas três companhias; que eles estavam prontos a servir em qualquer parte que os mandassem, porém queriam a sua paga.
    Tendo-os sua Ex.ª escutado urbanamente, passa a animá-los, e persuadi-los, que o não terem ido para o Rio, fora em razão de terem chegado novas disposições, e contra ordem para assim o executar, que se lhe havia de pagar, que estivessem contentes, que àqueles, que aqui quisessem continuar o serviço, se lhe dariam hortas aos casados e por fim procura sua excelência fazer-lhes ver, que em alguns pontos das suas queixas havia dificuldades, que ele não podia remover, e que era absurda a desconfiança, em que estavam a seu respeito; que ele contava, como era de esperar, fossem sempre dignos soldados, e que merecessem o agradecimento da nação, como tinham merecido até ao presente. Replicam que queriam ser pagos por letras bem como os oficiais. Segue sua excelência dizendo-lhes, que os oficiais se sujeitavam a um alto rebate, que eles o não podiam sofrer, nem ele general passar letras de pequenas quantias. Estando a romper a alva (**) [Seriam aproximadamente cinco horas e um quarto [0515h].] e havendo já concorrência de povo na estrada, roga o coronel a sua excelência queira retirar-se, ao que anui, e seguindo para a Praça, marcha o coronel, com regimento para o seu acantonamento, acompanhando-o o coronel Flangini, no maior sossego, e na melhor ordem, chega às 6 horas, e recolhem-se as companhias nos seus respetivos quartéis sem a menor novidade.
Á vista deste relatório tão verdadeiro, como exato, seria escusado nada adicionar, mas o coronel julga de justiça ajuntar algumas reflexões, que o mesmo objeto parece apontar. É bem certa, e clara a falta, que este Regimento cometeu, mas que moral, disciplina militar não é preciso haver em seu corpo para retrogradar do seu delirante desacerto, e parar depois dos primeiros passos! É mais fácil conservar sucessiva e pacífica ordem, do que fazer reviver a ordem quebrantada. Lisonjeia ver triunfar o respeito, e a subordinação mesmo a par do erro, e mostrar-se este corpo digno mesmo na sua falta. É nas circunstâncias difíceis que se prova o verdadeiro espírito, e conceito de um corpo. O perigo apura o merecimento; nisto se prova quanto pode a boa educação militar com bons soldados; e é de esperar que este acontecimento não seja mais que ligeira nuvem nos belos dias da sua existência militar.
    Cumpre igualmente não deixar em silencio que o seu coronel tinha já repetidas vezes dirigido representações tocantes aos sofrimentos dos soldados, e bem que algumas não pudessem ter pronta solução, ignora a fatalidade porque outras não foram escutadas em tempo oportuno, como o foram imediatamente depois deste triste facto. Longe da sua ideia querer por tais reflexões disfarçar a gravidade em si de tal procedimento no seu regimento; mas é justo que a verdade apareça e que se pese o bem e o mal. Desta maneira julga ter praticado e satisfeito ao que se tinha proposto. Montevideu, o l.° de Novembro do ano de 1821.

João Crisóstomo Calado

RIO DE JANEIRO NA TYPOGRAPHIA NACIONAL.

***

Pouco menos de um mês depois, o general Carlos Frederico Lecor publica uma ordem do dia em que se refere expressamente aos acontecimentos de 23 de Junho:


Quartel General de Montevideu, 20 de Julho de 1821

Ordem do Dia

O capitão general, comandante em chefe, ao mesmo tempo que desaprova a conduta que mostrou inconsideradamente o 2.º Regimento de Infantaria da Divisão dos Voluntário Reais d'El-Rei, na noite do dia 23 do mês próximo passado, escolhendo o modo menos militar, e mais incompetente, para lhe fazer as suas representações quando, sem ordem, saiu dos seus quartéis e resolveu assim causar-lhe o sentimento mais estranhável, tem a satisfação que é possível no meio de um sucesso tão fatal, considerando que a deliberação dos soldados em pedirem naquela ocasião os seus oficiais, e as suas bandeiras, a atenção ao que se lhes disse, e o sossego e harmonia com que voltaram para o seu acantonamento, parece provar que o seu momentâneo desvio da primeira lei dos exércitos não foi ação voluntária deles, mas sim obra de um alento sedutor que se agitou para os alucinar.

O comandante em chefe quer persuadir-se de que os filhos de um povo constante e generoso, e eles os mesmos que deram às nações admiradas, no abandono das suas casas, dos seus haveres, e de tudo o que mais anima os homens na vida, para cumprirem as ordens do seu governo, o maior exemplo de patriotismo, de obediência, e de resignação, que os anais do mundo apresentaram e que a história cuidadosamente recomendará à posteridade mais remota, para que lá mesmo seja famoso; as tropas que no espaço de seis campanhas combateram na Europa com vantagem, porque o fizeram com honra e subordinação; os soldados a quem a vitória acompanha desde os campos da Roliça, até às margens do Garona, onde a paz desejada mandou fazer alto aos seus brios, aqueles finalmente que na América sustentaram  em quatro campanha o crédito merecido porque foram valentes, humanos e disciplinados, não podiam aventurar-se a um passo que é contrário aos seus deveres, à sua reputação e aos seus interesses, e que seus veneráveis pais, encanecidos na prática da virtude, hão de saber com a dor mais intensa, por ser diametralmente oposto à boa educação que lhes deram, sem que a eles enganosamente os arrastasse mão insidiosa, malévola e estranha, invejosa da glória deles, adversa ao bom nome português e declarada inimiga da felicidade desta província, e dos seus dignos e beneméritos habitantes.

Ainda assim sendo, o proceder do 2.º Regimento, naquele repente vertiginoso, não é escusável, porque mal se parece a debilidade e ligeireza com que os soldados então faltaram à sua obrigação, com a fortaleza e reflexão de quem tantas vezes viu inalteradamente a morte no meios dos combates.

O comandante em chefe, na impossibilidade de que os acontecimentos passados deixem de ter existido, deseja ao menos que o poder eterno apague na memória das gentes a recordação da parte da noite de 23, e lavar, à força de bom comportamento, a nódoa que tanto o afronta, para que não vá escurecer com uma nuvem negra e ominosa os claros e gloriosos dias da pátria, e para que modere, ou inteiramente satisfaça, e desarme a justa indignação, com que ela há de castigar os ultrajes que fazem ao seu decoro e dignidade os que violam o respeito e obediência das leis.

Barão da Laguna


Sem comentários:

Enviar um comentário