quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Os Voluntários: Contributos para uma caracterização do oficialato


Em finais de 1814, na ressaca da Guerra Peninsular, o príncipe regente D. João mandou aprontar um corpo de tropas ligeiras do Exército Português para servir no Brasil.  A Divisão de Voluntários Reais (DVR), que tenho vindo a tratar aqui, no âmbito do bicentenário sobre a campanha de Montevidéu, serviu como válvula de escape para centenas de oficiais que procuravam avanço e promoção num exército completo, saído ‘vítima’ da eficiência de Miguel Pereira Forjaz e do marechal general W. C. Beresford e do total comprometimento português nas campanhas da Guerra Peninsular.

Quando a divisão foi anunciada formalmente através da publicação do decreto da sua criação no Diário do Governo a 15 de maio de 1815, eram nele pedidos voluntários entre o oficialato do Exército Português, com a promessa de acesso ao posto superior e que se manteriam agregados ao seu regimento de origem, no número dos destacados.

Nesta postagem vou analisar o número de voluntários que se responderam ao apelo e retratar o espírito de aventura e promoção profissional que a DVR proporcionou àquela altura.

O Exército Português

2.º Corpo de Cavalaria (Divisão dos Voluntários Reais): Oficial e Soldado (1815-1823) - trajavam a azul ferrete


Antes de mais, é preciso perceber que apesar de estar a fazer um ano sobre o fim da Guerra Peninsular, o Exército Português manteve-se em números de guerra até meados de novembro; altura em que passou a efectivos de paz, totalizando 40,840. Refletindo o número sem precedentes de oficiais que se haviam incorporado, em cerca de 48 batalhões de infantaria (2 batalhões por cada um dos 24 regimentos), só para nos referir à mais significativa das armas.

Uma expedição ao Brasil, em defesa do império e da Santa religião, já de si promessa de aventuras e de avanço e promoção, quem sabe por distinção no campo da honra, era ainda mais adocicado pelo acesso ao posto seguinte e a manutenção no Exército de Portugal, e não, como era habitual passar aos quadros do Exército do Brasil.

É natural que muitos oficiais tenham respondido sem grande hesitação. João da Cunha Lobo Barreto, que entra na DVR como tenente do 1.º Batalhão de Caçadores, vindo de Caçadores n.º 4, exprime bem o sentimento em presença:

Tão depressa se publicou este Decreto, se ofereceram para servir na mesma Divisão um sem numero de oficiais, inferiores e soldados; sendo tal o entusiasmo que podemos asseverar [...]  que se o governo naquela ocasião mandasse prontificar um corpo de 12 ou 15 mil homens aguerridos, os encontraria prontos para semelhante expedição.


Nas suas memórias, editadas pelo filho, o coronel Francisco de Paula Azeredo, que vem a comandar o 2.º Regimento de Infantaria, apresenta-nos o élan que a DVR inspirava num exército que esteve em guerra, de 1807 a 1814, e que se sujeitava agora à paz:

[...] 45 anos, com constituição robusta e ânimo ousado. A vida sedentária incomodava-o; o serviço ordinários das guarnições era uma ocupação modesta para quem via uma nova carreira de combates e glória. O trabalho era o seu deleite, e a actividade o maior prazer da existência. Não quis portanto deixar escapar esta oportunidade favorável de ir ao novo mundo aumentar os seus créditos e melhorar a sua posição, pois é sabido que além da sua espada não tinha outro património.

A questão da composição da infantaria da DVR: Caçadores todos?

William Carr Beresford
(Sir William Beechey)
Apesar de comummente se pensar que a DVR era constituída por 4 batalhões de caçadores, a 8 companhias cada, a mesma foi pensada para ser constituída por 12 companhias de caçadores e 20 companhias de infantaria ligeira (na verdade infantaria de linha regular, mas fardada como caçadores), mais não seja porque esvaziaria os 12 batalhões de caçadores que ficariam em Portugal (basta notar desde já que 38 dos 60 tenentes de todos os batalhões se apresentaram como voluntários).

Silvino da Cruz Curado refere que foi Beresford, no conflito com os governadores do Reino, que forçou um limite de 12 companhias de caçadores, pois como o marechal general Beresford coloca de forma clara, “[...] ponhamos-lhe nós o fardamento que quisermos, nem por isso os faremos caçadores... podendo, talvez tirar-lhes as qualidade de boa infantaria”. 


Oficiais generais e soldado e oficial da DVR
(José Wasth Rodrigues)

Apesar do conflito entre Beresford e os governadores do reino ser algo que foi mais ou menos constante desde 1809, a situação em paz era pior no sentido em que os interesses do maior aliado, D. Miguel Pereira Forjaz, começavam a divergir fortemente do dos ingleses desde o final da Guerra em 1814.

É de crer que Beresford terá estabelecido a divisão de efetivos entre infantaria de linha e caçadores da forma que veio a tomar, interpretando ao mesmo tempo os desejos do governo do Rio de Janeiro e as necessidades do Exército. 12 companhias de caçadores já implicaria que se retirasse cerca de um quinto de todos os oficiais de caçadores; imagine-se então se todas as 32 fossem recrutadas  nesta arma.

Os números

Embarque das tropas em Praia Grande (J. B. Debret)

Assim sendo, a DVR deveria ser constituída por 20 companhias de infantaria, 12 de caçadores, 12 de cavalaria e 2 de artilharia, tirando o efetivo do estado maior ao nível divisão, brigada e batalhão/corpo. 
Os efetivos seriam recrutados para cada um destas companhias a partir da arma correspondente.

Em termos da classe de oficiais, a DVR apresentava as seguintes vagas:

Infantaria:
2 tenente coronéis, 4 majores, 20 capitães, 20 tenentes, 40 alferes

Caçadores
2 tenente coronéis, 4 majores, 12 capitães, 12 tenentes, 24 alferes

Cavalaria
2 tenente coronéis, 4 majores, 12 capitães, tenentes e alferes

Artilharia
2 capitães, 2 primeiro tenentes e 6 segundo tenentes


Artilharia a Cavalo, da2.ª Brigada)  (Divisão dos Voluntários Reais): Oficial e Soldado (1815-1823) - trajavam a azul ferrete

A partir de 15 de maio, muitos oficiais voluntariaram-se para a expedição no Brasil. 
Estes são os números, por arma e por posto, de quantos se apresentaram:

Infantaria
3 coronéis, 7 tenentes coronéis, 14 majores, 55 capitães, 88 tenentes, 147 alferes
(Incluem-se nestes os coronéis Luís do Rego Barreto e Carlos Sutton e o tenente coronel John Prior, sendo que nenhum entrou)



Caçadores
5 tenente coronéis, 6 majores, 30 capitães, 38 tenentes e 41 alferes



Cavalaria
4 tenente coronéis, 3 majores, 10 capitães, 14 tenentes e 11 alferes


Artilharia
1 coronel, 1 tenente coronel, 7 capitães, 9 primeiros tenentes e 17 segundos tenentes


Se voltarmos atrás e relembrarmos as palavras do memorialista Lobo Barreto, que se o governo “mandasse prontificar um corpo de 12 ou 15 mil homens aguerridos”, não teria problema em o fazer. Pois os números demonstram-no de forma clara, e pouco faltaria (excetuo a cavalaria) para formar uma segunda DVR, se tal fosse necessário.

Aqui temos o rácio entre oficiais voluntários face às vagas no posto imediatamente superior na DVR e percebemos melhor a oportunidade que esta DVR representou para o oficialato português, sem perspetiva de promoção e muito jovem.




A classe dos capitães é a que mais se candidata, até porque era tradicionalmente o ponto de engarrafamento na carreira militar e o término desta para muitos. As pouquíssimas vagas de major (12 em toda a DVR, no que respeita aos batalhões) refletem um rácio que chega a ser de 14 capitães de infantaria de linha para 4 vagas de major, seguida de perto por 30 capitães de caçadores (mais de metade de todos os comandantes de companhias de caçadores do Exército) para 4 vagas de major. A arma que parece menos afetada é a de cavalaria, mas ainda assim apresenta 3 capitães por cada cada uma das 4 vagas de major nos dois corpos da arma. Apesar das outras classes não apresentarem rácios tão altos, mostram claramente que a oferta excedeu a procura em cinco vezes (se excluirmos as vagas de estado maior de brigada e divisão, que influem muito pouco nos resultados).

O caso dos Caçadores

2.º e 4.º Batalhões de Caçadores (Divisão dos Voluntários Reais, 1815-1823) - trajavam a castanho ou Saragoça


Ainda que Beresford tenha reduzido a 12 companhias o número de caçadores a retirar do Exército, ainda assim os 12 batalhões de caçadores ficaram sem muitos dos seus efetivos. 19,3% de todos os oficiais dos batalhões de caçadores foram para a DVR, abrindo promoção aos que ficaram. 

1 em cada 5 oficiais de caçadores em 1815 entrou na DVR.

Se verificarmos o número de oficiais de caçadores que se voluntariaram, por posto, é impressionante, tendo em vista as percentagens face aos efetivos dos 12 batalhões metropolitanos:

5 tenente coronéis (41.6% de todos os tenentes coronéis de caçadores)
6 majores (50%)
30 capitães (41.6%)
38 tenentes (63%)
41 alferes (34,2%)

Por exemplo, 63% de todos os tenentes de caçadores do Exército à altura, 38 num total de 60, ofereceram-se como voluntários, tendo 12 deles obtido o comando de uma das companhias.

***


Ainda que hoje tenuemente lembrada pela história militar portuguesa, a Divisão de Voluntários Reais foi naquela altura um imenso acontecimento para todos os militares do seu tempo e que se repercutiu de forma extraordinária na vida de muitos homens, mesmo entre os que estiveram em combate na Espanha e na França em 1813 e 1814.

Próximo: que medalhas usavam estes militares e como nos indicam elas a experiência militar que eles levaram à Campanha de 1816?

Conheça mais sobre o Exército Português nos Finais do Antigo Regime, de Manuel Amaral 

Fontes

- Arquivo Histórico Militar, 2/1/8/4 & 2/1/8/10

- AGUILAR, Francisco D’Azeredo Teixeira D’, Apontamentos Biographicos de Francisco de Paula D’Azeredo, Conde de Samodães, Porto, Tip. Manoel José Pereira, 1866.

- BARRETO, João da Cunha Lobo, “Apontamentos historicos a respeito dos movimentos e ataques das forças do comando do general Carlos Frederico Lecor, quando se ocupou a Banda oriental do Rio da Prata desde 1816 até 1823 (…)”, in: Revista do IHGB, vol. 196, Julho-Setembro 1947, pp.4-68.

- CURADO, Silvino da Cruz, Campanha de Montevideu, A Ocupação Portuguesa do Uruguai, 1816-1823 (Col. Batalhas da História de Portugal, n.º 14), Matosinhos, QuidNovi, 2006.

- LIMA, Cor. Henrique de Campos Ferreira, O Exército Português: Enciclopédia pela Imagem ; dir. artística Alberto de Sousa. - Porto : Livraria Lello, Limitada Editora, 1930. pp 54-55.

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