sábado, 19 de novembro de 2016

Batalha de India Muerta (19 de novembro de 1816)



Após a acalmia das operações na fronteira do Rio Pardo, com a vitória na batalha de Carumbé, era a vez da Divisão de Voluntários Reais (DVR), do Exército de Portugal, entrar em ação na costa atlântica da Banda Oriental, após uma pausa de 2 meses devido a problemas de recolha de cavalos. 

Desde Agosto que a vila de Mello, mais para o interior, e a fortaleza de Santa Teresa, à entrada da Angostura, estavam ocupadas por forças do Rio Grande, exatamente para preparar a chegada da Divisão: a 9, Melo ou Cerro Largo era tomada pelo coronel Félix de Mattos, e, a 12, Santa Teresa é facilmente tomada pelo major Manoel Marques de Sousa.



A Campanha
O marechal de campo Sebastião Pinto de Araújo Correia, comandante da coluna de vanguarda da DVR, partiu  no dia 9 de novembro da fortaleza de Santa Teresa em direção a passo de Castillos, um incipiente povoado entre as lagunas Negra (maior, a norte) e de Castillos (menor, a sul), que abre para Rocha, Maldonado e depois Montevidéu. 
O tenente João da Cunha Lobo Barreto escreve, nas suas memórias, que antes da Vanguarda sair, procedeu-se a uma parada de cavalaria que descambou em desastre, com os cavalos e cavaleiros a demonstrarem da pior forma a ainda incipiente adaptação aos cavalos locais:
[...] ao proferir – a cavallo – foi tal a desordem que a não podemos descrever: soldados correndo á descripção dos cavallos; outros lançados por terra; arreios dispersos... finalmente era uma scena de riso. (Lobo Barreto, p. 7)




A Batalha
Ambos os comandantes (Pinto, do lado português, e Frutuoso Rivera, do lado oriental, comandando a 2.º División) tinham ordens de atacar o inimigo numa ação geral se considerassem haver a mínima possibilidade de vencer. O primeiro, pelas instruções do tenente general Lecor e o segundo, pelas de José Artigas.

A 16 de novembro, nos passos a noroeste da lagoa de Castillos (Consejo e Chafalote), um pouco além de Castillos e recebendo informação de locais que o grosso da força do comando de Frutoso Rivera estaria no arroio de Alferez, cerca de 60 km a ocidente, Sebastião Pinto decide-se a atacar Rivera, pedindo duas companhias de caçadores emprestadas ao 2.º Batalhão, da brigada de Pizarro, aumentando assim a sua força [vide Ordem de Batalha em baixo].

No dia seguinte [17], “se emboscou” nuns palmares de Talayer, um pouco a norte do Passo Real de Castillos e, coberto pela marcha da 2.ª Brigada para o passo de Chafalote na estrada principal, marchou de noite para oeste, cada vez mais para o interior.

Na madrugada do dia 18, por volta das 7 da manhã, a Vanguarda topa duas partidas orientais de reconhecimento (bombeiros, como eram então conhecidos). 
Apesar disso, Sebastião Pinto consegue chegar às costas do arroio India Muerta, no passo de Coronilla, como era então conhecido, mantendo a infantaria e artilharia ocultadas (relembremos: 4 companhias de granadeiros e 4 companhias de caçadores). Pernoitaram junto à casa de Manoel dos Santos, que estaria localizada a oriente do arroio India Muerta.

Prevenidos dos movimentos dos portugueses, Rivera e os seus cerca de 1800 orientais, uma mistura de milícias e algumas tropas de linha, que estavam a treinar há algum tempo na área do arroio de Alferez marcham rapidamente ao encontro do inimigo:

En el acto montamos á caballo, infantería y caballería y salimos á encontrarlos; amanecimos á retaguardia del enemigo, que había marchado esa noche como nosotros igualmente, [...]. (Cáceres, p.x)

No dia 19, os portugueses atravessam o arroio de India Muerta e marcham até o Puesto da Vella Velazquez, cujas ruínas ainda podem ser vistas hoje. Fazem este pequeno percurso de cerca de 600 m, sob fogo inimigo ligeiro e batendo cada vez mais partidas inimigas. 
Do Puesto avançam para o passo de Manoel Patricio, mais a ocidente, no arroio de Sarandi de la Paloma onde chegam às 11 horas. Lobo Barreto descreve esse sítio como “um pequeno pessegal junto a um rancho de palha”. Aí, Sebastião Pinto manda descansar e carnear.

É de notar que o principal caminho nessa altura corria de oeste a leste, enquanto que hoje em dia o eixo rodoviário principal corre de norte a sul.


Plano da batalha de India Muerta, in Vaszquez (1953)

Nesse momento, ainda atentos a algumas partidas a oeste, enquanto se preparava decerto o gado para matar, as tropas portuguesas começam a descortinar, a leste, na sua retaguarda, uma enorme coluna de cerca de milhar e meio de cavaleiros com 4 de frente a tomar o Puesto da Vella Velazquez: o grosso das forças orientais no teatro.

Enquanto os orientais se dispuseram em linha de batalha junto ao Puesto, uma enorme meia lua, com a cavalaria nas alas, os portugueses tomaram as suas providências, deixando uma companhia de caçadores no passo de Manoel Patricio, onde estavam, sob comando do major Andrew MacGregor, um dos dois ingleses da Divisão, e, formando um quadro, passaram a zona alagada da Cañada do Espinal e formaram linha a cerca de 750 metros dos orientais, em terreno mais baixo, sempre sob fogo inimigo, ainda que extremamente eficaz dadas as distâncias.

O inimigo, frio espectador da nossa manobra e atribulação, desenvolveu a sua forte coluna em linha de batalha, formando uma meia lua a um quarto de légua do passo, tendo no centro o seu canhão e a pouca infantaria. (Lobo Barreto, p.7)
Croquia da batalha, de acordo com Ramon de Caceres

Apesar do que muitas fontes dizem, os orientais não eram só cavalaria. Na verdade, a maioria era infantaria, mas todos andavam a cavalo. Ao contrário das forças portuguesas, treinadas como unidade desde pelo menos julho de 1815, as orientais eram formadas fundamentalmente de milícias, e algumas delas criadas ainda em 1815. Ramón de Cáceres mostra-nos bem o carácter amador da maioria neste exército de patriotas, ainda que bem intencionados e defendendo a sua terra.
Ainda assim, o que os portugueses viram enquanto carneavam, próximo do arroio de la Paloma, foram milhar e meio de homens a cavalo, a juntar às pequenas partidas que já os hostilizavam desde que haviam passado o arroio de India Muerta.

Testemunhos e localização na batalha
Deixo, por ora, a descrição da batalha propriamente dita às penas de quem a combateu e testemunhou e cujas memórias podem ser lidas em postagens diferentes. Para facilitar uma exploração do caro leitor, deixo uma imagem adaptada com as posições de cada um dos memorialistas que temos vindo a lembrar neste blogue.

Preparo um livro sobre esta campanha, mas deixo-vos aqui quase todas as fontes de memorialistas. A leitura das fontes é metade do divertimento. Interpretá-las é mais custoso.

Adaptação do mapa

(I) marechal de campo Sebastião Pinto de Araújo Correia
Relatório oficial da batalha, enviado 2 dias depois ao tenente general Lecor. Dá um mérito excessivo às 4 companhias de granadeiros na decisão da batalha que Lobo Barreto desmente, indicando que apenas dispararam uma salva quando já o inimigo estava em debandada.

(II) tenente João Cunha de Lobo Barreto
Memórias escritas décadas depois e publicadas em 1947, com anotações do Barão do Rio Branco. O texto é aparentemente anónimo, mas o autor identifica-se à frente no texto. Demonstra um forte desagrado face à conduta do comandante da Coluna da Vanguarda, Sebastião Pinto, assim como face à sua experiência de comando em combate. Este tipo de interação social entre oficiais do exército português era extremamente comum, na lógica social da economia de favores do Antigo Regime.

(III) sargento mor Manoel Marques de Sousa
Carta escrita dois dias depois ao seu pai e comandante de unidade, a quente, e após ter ficado contuso em virtude de combate. Porque ao pai, há mais candura na descrição. É possivelmente a fonta portuguesa mais 'honesta'.

(IV) teniente segundo Ramon de Cáceres
Memórias escritas, salvo erro, em 1830, década e meia depois. Existem duas versões semelhantes e complementares, assim como um croqui numa delas. Ambos textos na mesma edição. Este testemunho é essencial para perceber as tropas orientais e o seu percurso até India Muerta.

(V) cirurgião Francisco Dionisio Martinez
Memórias escritas anos depois, relembrando a sua pronta ação no socorro dos feridos orientais na batalha nas horas e dias a seguir. Ainda que não na batalha, as suas memórias mostram-nos o estado das forças orientais derrotadas, dispersas e ébrias e a sua posterior recuperação sob o capaz comando de Frutuoso Rivera.


***

Alguma cauções e notas , no entanto, em termos de interpretação. Dois temas controversos no diálogo entre os memorialistas, entre o fumo dos mosquetes, o grito de camaradas feridos, nalguns a instantânea descida ao caos do combate, noutros a primeira batalha, o baptismo de fogo. São eles:

Início da Ação: carga portuguesa numa ou nas duas alas?
Ao contrário do que refere Ramón de Cáceres nas suas memórias, de facto apenas a cavalaria da ala direita é que carregou o flanco esquerdo oriental no início da ação. 
Sabemos isso porque Manoel Marques de Sousa, que escreveu sobre isso 2 dias depois ao pai, comandava a ala esquerda portuguesa e indica claramente não ter havido carga do seu lado. Se tanto, Marques de Sousa acabou por ser ver envolvido inadvertidamente, como é óbvio, com uma coluna de cavalaria inimiga. 
De facto, a cavalaria oriental, nas alas, fazia o que Caceres chama 'martillo', tentando envelopar a linha portuguesa. Isso dava a ilusão de uma carga, mas era apenas o que se pode chamar de aproximação. Pode-se até dizer que foi este avanço oriental que leva Pinto a ordenar a carga na ala direita.



Os 'Talaveras': os problemas na cavalaria
São as memórias de um oriental, Ramón de Cáceres, no seu baptismo de fogo, aos 18 anos, que nos informa algo muito relevante sobre as táticas da cavalaria portuguesa:

Los 100 hombres que atacaron nuestro costado izquierdo [o primeiro ataque da cavalaria portuguesa], venían como en 4 filas con 25 hombres de frente, traían la espada en mano y eran puros talaveras que aun no sabían andar á caballo, ó por mejor decir, no conocían los caballos de la tierra, por cuya razón se prendían por el muslo en las pistoleras con las correas que tenían para asegurar el capote, y una prueba de esta verdad es que algunos que allí murieron, fueron arrastrados por sus caballos sin poderse desprender de la silla. (Caceres)

(Refere também o uso de espadas direitas, que seriam usadas por cavalaria pesada, conforme Manuel Ribeiro Rodrigues)

Ficamos aqui com a confirmação da problemática adaptação da cavalaria portuguesa aos cavalos locais (para não falar da falta deles), que mencionei acima com o episódio da parada de cavalaria do dia 9/11, ainda na fortaleza de Santa Teresa. 
Ainda hoje Talavera indica alguém que não sabe andar a cavalo, por arcaica e desusada que seja. Irónico que a batalha de Talavera, no distante 1809, não tenha contado com a participação de tropas portuguesas, mas atesta, certamente, o estatuto icónico da primeira grande vitória de Wellington na Espanha e a reverberação no novo mundo.


Ordem de Batalha

Divisão de Voluntários Reais, Exército de Portugal
COLUNA DA VANGUARDA
Marechal de Campo Sebastião Pinto de Araújo Correia

- 2 esquadrões de cavalaria, DVR 
(tenente coronel José Tovar Albuquerque e sargento mor Duarte Mesquita Correia)
- 4 companhias de granadeiros, DVR
(tenente coronel António José Claudino Pimentel)
- 1 obús, DVR
(1.º tenente Gabriel António Francisco de Castro)
- 4 companhias de caçadores (três do 2.º batalhão e uma do 1.º), DVR 
(sargento mor Jerónimo Pereira de Vasconcelos e sargento mor Andrew McGregor) (2 delas emprestadas no dia 17/11 pelo 2.º Batalhão de Caçadores, a adicionar às duas já na Vanguarda)
- 2 esquadrões de cavalaria da Legião de Voluntários Reais do Rio Grande + 2 esquadrões de cavalaria da Legião de Tropas Ligeiras (ou de São Paulo)
(sargento mor Manoel Marques de Sousa).

Exército Oriental , Liga de los Pueblos Livres
CORPO DE OBSERVACIÓN (2.ª DIVISION)
Coronel Frutuoso Rivera

- 3 divisões de infantaria, 250 h cada (dividida em 5 companhias)
- Divisão de Cavalaria da Direita, 250 h, (capitão Ramón Mansilla)
- Divisão de Cavalaria da Esquerda, 250 h, (capitão Venancio Gutiérrez)

Baixas (portuguesas)

INDIA MUERTA (19/11)

MORTOS
FERIDOS
Ação
OFICIAIS
PRAÇAS
OFICIAIS
PRAÇAS
Cav, DVR
1
24
2
24
Inf, DVR
1
1
0
16
Cav, LSP
0
1
1
6
Cav, LegCav RG
0
0
0
0
TOTAL
2
26
3
40



Oficiais Mortos
Sargento mor Duarte Joaquim Correia de Mesquita
Alferes Carlos Frederico Krusse

[dados a 21.11, dados pelo sargento mor Manoel Marques de Sousa:]
“Esquadrões de S. Paulo:- major José Pedro Galvão: teve uma contusão de metralha nas costas sobr. Pescoço- furriel António José Pessoa: uma contusão de bala de clavina na perna levemente- trombeta Domingos da Costa: uma ferida de bala na coxa- soldado Francisco de Albuquerque: ferida de bala nas costas- João Baptista da Silva: ferida de bala na perna- Fernando Rodrigues: ferida leve de bala no lado direito- José Domingues: contusão na perna com bala levemente- José António Monteiro: morto
Infantaria da DVR: - 3 mortos, 18 gravemente feridos; 14 levemente feridosCavalaria: - Mortos: 1 major, 1 sargento, 23 soldados e cabos- Gravemente feridos: 1 tenente coronel, 1 capitão, 1 sargento ajud, 1 furriel e 22 soldados”.

Biografias
Fontes
- BARRETO, João da Cunha Lobo, “Apontamentos historicos a respeito dos movimentos e ataques das forças do comando do general Carlos Frederico Lecor, quando se ocupou a Banda oriental do Rio da Prata desde 1816 até 1823 (…)”, in:Revista do IHGB, vol. 196, Julho-Setembro 1947, pp.4-68.
- CACERES, Ramon de, “Memoria de Don Ramón Cáceres sobre Hechos Históricos en la República Oriental del Uruguay”, in: Contribución documental para la Historia del Río de la Plata (Tomo V), Buenos Aires: Museu Mitre, 1913. pp. 251-270 (pp. 266-269)
- DUARTE, Paulo de Queiroz, Lecor e a Cisplatina 1816-1828 ( 3 v.), Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1984.
- MARTINEZ, Francisco Dionisio, Autobiografía de Francisco Martínez Revista Histórica tomo 6.°, pág.416 y 628.In: Boletin Histórico, n.º extraordinário, setembro 1950, Estado Mayor General do Ejército, pp. 230-233
- PARALLADA, Huascar, “Primeira batalla de India Muerta (concurrencia documental y notas)”, in: Boletin Historico, n.ºs 112-115, 1967, Estado Maior do Exército do Uruguai, pp. 191-236.
- RODRIGUES, Manuel A. Ribeiro, Guerra Peninsular (II): Cavalaria 1806-1815 (1.ª Reimpressão), Edições Destarte, Lisboa, 2000. pp. 24-25
- VAZQUEZ, Ten. Cor. Juan Antonio, Artigas Conductor Militar (Coleção General Artigas, n.º 12) Centro Militar, Montevidéu, 1953.

- Comisión Nacional Archivo Artigas, Archivo Artigas, Montevideo, Monteverde, tomo 31.

ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

1 comentário:

  1. Interessante artigo!
    Por mera curiosidade, quero informar que tive um antepassado, natural da Lourinhã, de nome "José Roque", soldado do 2º Batalhão dos "Voluntários Reais do Príncipe", que casou em Lx. (S. Paulo) pouco antes de embarcar para o Brasil no dia 28.Jan.1816.
    Teve, aliás, uma filha em Montevideo, creio que logo no ano seguinte, mas regressou mais tarde ao nosso país.
    José Roque, foi um dos soldados do lote de dez do 2º batalhão dos “Voluntários Reais do Príncipe” que casou antes de prosseguir viagem.
    Após embarcar seguiu para o Rio de Janeiro, Brasil. A filha, Maria do Rosário, nascida em Montevideo, putativamente regressou com ambos os pais e, é certo, casou em Portugal, Lisboa (Ajuda) em 1836, com um militar, este de uma família de nomeada, "Rebocho"...
    mercurio2@portugalmail.pt

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