sábado, 27 de outubro de 2018

O vencido de Carumbé (Gustavo Barroso, 1930)


“Artigas há sido completamente derrotado y se há refugiado en los bosques...”
(Carta de Puerreydon a San Martin)

Um turbilhão de cavalos rolava sobre as coxilhas verdes à luz quente do sol de outubro. Os oficiais à frente, as esporas enterradas no vasio dos zainos e dos malacaras. Os lanceiros milicianos, de lanças em riste, quasi de pé, apoiados nos pesados estribos de bronze. Os dragões, com as clavinas curtas a tiracolo e nas mãos, altas no ar, os curvos sabres refulgindo. E a bandeira real agitada ao vento nas palpitações convulsas da carga.
Eram uns quatrocentos homens – dragões de Lunarejo de Sebastião Barreto, lanceiros do Rio Pardo de Francisco Pereira Pinto e legionários paulistas de Silva Brandão. À ordem de carregar, os esquadrões se tinham movido como em uma parada. Depois, a voz dos oficiais ordenara:
- A trote!
Os animais aceleraram a marcha. E, logo, a segunda ordem dominou, forte, o tropear da cavalhada:
- A galope!
Então, mal os baguais espumantes tomavam o impulso da corrida, sobre eles ecoou o mandado terrível:
- Por esquadrões, carregar!
O turbilhão rolou pelas coxilhas verdes, esmagando a macega meio ressequida, e foi bater cegamente a infantaria de Artigas abandonada no meio da planicie. Recebeu-o uma descarga estralejante. Alguns cavalos e alguns cavaleiros caíram. O turbilhão passou por cima deles. Um baque surdo. Uivos de dôr. Barbaros gritos de raiva. Detonações isoladas. E o rumor sinistro dos ferro mordendo as carnes e os ossos: baionetas que entravam no pescoço dos cavalos, lanças que varavam peitos e costas, sabres que fendiam ombros e craneos.
A infantaria artiguista fraquejou. Desfizeram-se os liames da formatura. Os soldados dispersaram-se em grupos, defendendo caramente a vida do ataque dos cavaleiros. A cavalaria brasileira caracolou à direita e à esquerda. Ouviam-se brados roucos. Os dragões abriam caminho pela pampa a talho e ponta de espada. Os lanceiros paravam de combater, cansados de matar. E o vento brincava nas bandeirolas de suas lanças empurpuradas de sangue.
Assim, fôram derrotados os últimos soldados de José Gervazio Artigas, chefe da confederação do uruguai, Corrientes e Entrerrios, nos campos dos serros de Sant'Ana, que os orientais denominam Carumbé, pelo brigadeiro Joaquim de Oliveira Alvares.

* * *

O general Curado, que defendia nossas fronteiras do sul, mandara-o reconhecer as posições de Artigas com menos de oitocentos homens e duas peças ligeiras. EM frente aos serros, a coluna expedicionária viu-se de repente em presença de grande força inimiga. Comandava-a Artigas em pessôa. Eram mil e seiscentos homens, dos quais quinhentos de infantaria mandados por Toríbio Fernandez e mil e cem cavaleiros guiados por André Latorre, Baltazar Ojeda, Inácio Gatelli e Domingos Manduré.
Surpreendido em ordem de marcha, Alvares foi forçado a aceitar combate. Ocupou rapidamente pequenas lombas, colocou bem a artilharia e, quando a numerosa cavalaria adversa o atacou, metralhou-a à vontade. Campo de tiro excelente. Artilheiros habeis. Canhões pequenos com bôas parelhas de machos atrelados aos armões, podendo ter grande mobilidade, fizeram perder muita gente à gauchada entrerriana e corrientina, enquanto parte de sua infantaria de apoio, os legionarios paulistas de Galvão Lacerda, dificultavam aos chefes artiguenhos reconduzir as cavalarias ao combate.
Esgotadas as reservas, brechados os esquadrões pelas granadas de Bento José de Morais, afeito a metralhar corrientinos e que os dizimara havia uma semana no Ibiroacaí, perdido o impulso primitivo pelo cansaço das cargas improfícuas, dispersos e espingardeados pelotões inteiros pelas guerrilhas de João Pais e Alexandre Luiz de Queiroz, Artigas sentiu-se  escarpar-se-lhe das mãos a sorte da peleja e apelou, como derradeiro recurso, para a infantaria.
O regimento de Toribio Fernandez avançou a marche-marche. Foi aí que o brigadeiro Alvares atirou sobre ele o turbilhão de dragões e lanceiros. Os esquadrões descoseram as companhias corrientinas de amplas gandolas escarlates. Os sabres e as lanças embebedaram-se fartamente no sangue dos defensores do caudilho. A derrota desgrenhada assoprou o panico nas filas desorganizadas e nos grupos dispersos, açoitando pelos agrestes caminhos dos serros de Sant'Ana, na mesma confusão, peões e cavaleiros.

* * *

“Graças á velocidade de seu cavallo” - afirma conciencioso escritor – Artigas pôde escapar. Os cavalarianos vencedores viram-no ao longe, galopando entre um oficial e um frade, - o indio Manduré, comandante de seus lanceiros negros, e frei Monterroro, seu secretario.
Enquanto, entre centenas de mortos e feridos, os guerrilheiros de Jacinto Guedes recolhiam troféus: armas de preço, tambores, estandartes; contavam os prisioneiros, e reconheciam no meio dos cadaveres o do comandante Inacio Gateli, sobrinho do ditador, este fugia, como fugiria no Arapeí, como fugiria no Arroio da China, como fugiria no Taquarembô...
Escurecia quando meteu o fatigado cavalo num vau do Arapei. O oficial indio seguia-o em silencio, o rosto carregado de odio. O frade gemia e se lamentava sacudido pelos passos incertos do animal dentro dagua, o habito arregaçado, as pernas nuas beijadas pela correnteza fria. Fôram ter a uma pequena ilha deserta. O guarani acendeu uma fogueira debaixo das arvores. O frade gemeu e acabou enrodilhando-se no chão e ressonando. O caudilho derrotado, de pé, braços cruzados ao peito, cravava o olhar nas chamas. E as labaredas agitavam sua sombra desmesurada na alta barrança do rio...
Ao longe, os quero-quero gritavam. Nos capões de mato, estridulavam corujas. O vôo rapido dos curiangos cortava a clareira. O indio encostou-se a uma pedra musgosa, cerrou os olhos e adormeceu...
Quando a luz do sol acordou a campanha verde, o rio cinzento e o ceu azul, Artigas ainda estava na mesma posição. A fogueira extinguira-se sob o orvalho da madrugada. Seu olhar fixo mergulhava filosoficamente nas cinzas humedecidas.

Fonte
BARROSO, Gustavo, A Guerra de Artigas, s/l, Ed. Getulio M. Costa, [1930]. pp. 27-34

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