Entre os papeis da coleção da família Araújo de Azevedo, que se encontram no Arquivo Distrital de Braga, encontra-se uma interessante memória do então capitão de mar e guerra Francisco Maximiliano de Sousa. Enviada decerto ao secretário de Estado D. António de Araújo de Azevedo (1.º conde da Barca, 1754-1817), o oficial apresenta algumas sugestões acerca da melhor forma da Divisão de Voluntários Reais atuar no teatro do Rio da Prata, “em hum paiz cortado de rios”, sem o auxílio da marinha e um tipo específico de embarcação para o efeito.
Para lá do interesse técnico e táctico que o texto suscita sobre o momento histórico de 1816 e a iminente campanha portuguesa sobre a Banda Oriental, Maximiliano de Sousa refere também expressamente uma apresentação que o almirante Sidney Smith (1764-1840) fez no Rio de Janeiro em 1809 e num exercício que decorreu a 5 de Junho de 1809 na baía de Botafogo, com a presença do príncipe regente D. João, demonstando o uso e benefício das embarcações sugeridas.
Apesar do documento estar datado de 1810 (por causa de uma marca de água desse ano), é óbvio que o mesmo é de 1816, nomeadamente pela nomeação expressa da “Divizão de Voluntarios Reais de El Rey”, no primeiro parágrafo, nome pelo qual a grande unidade só passou a ter a 13 de Maio de 1816. Antes era “do Príncipe”, e ainda assim apenas desde Maio de 1815.
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Memória sobre a dificuldade de fazer guerra em país cortado de rios e canais sem auxílio de forças marítimas como nas margens do Rio da Prata, por Francisco Maximiliano de Sousa
A extrema dificuldade, ou para melhor dizer, a impossibilidade de fazer a guerra com vantagens em hum paiz cortado de rios, ou canais, sem hum auxilio de forças maritimas; me fiz lembrar algumas observaçoens aplicaveis á Divizão de Voluntarios Reais de El Rey no cazo de obrar activamente nas margens do Rio da Prata.
O pouco fundo do rio da Prata de Monte Vidéo para cima não premitindo ser navegavel a Navios de grande pórte; tórna se extremamente arriscado e dificil, pella sua largura, a passagem nos braços do Paraguai, sem hum poderosos auxilio maritimo: e como pellas razoens assima elle não pode sêr senão de embarcaçoens que não demandem mais de 3 athé 4 brassas, aprezenta-se logo a dificuldade de embarcaçoens miudas tanto para o embarque na margem Oriental, como para o dezembarque na Occidental, pois navios d'aquelle lote não podem conter Barcas chatas, ou grandes lanchas.
Para remediar este embaraço, e a despeza que cauzaria a construcção de embarcaçoens proprias para hum transporte, em huma estenção de nove a 10 legoas largura do paraguai entre Colonia do Sacramento e Barragan, lugar mui proprio para o desembarque na margem Occidental, me lembrei das canôas com Plataformas como aqui aprezentou o Almirante Britanico Sir Sidney Smith em 1809, e cujo serviço e rapidêz de movimentos prezenciou S. Mag. El-Rey Nosso Senhor a 5 de Junho do ditto anno na Bahia do Botafogo.
Hé esta maquina ou jangada (fig. 1.ª) composta de duas canôas de mediana grandeza, sôbre as quais se situa hum estrado ou platafórma segura as Canôas, por meio de cabos passados em arganéos dados no fundo d'estas, e olhais dados nos extremos dos barrotes, em que assentão as táboas, que formão a Plataforma (fig. 2).
Em hum e outro extremo d'esta Plataforma á hum estrado unido a ella por gonzos (fig. 3) para o embarque, e dezembarque, de Artilharia, Carros de Campanha, e cavalos. As Canôas se lhe poem hũa sobre-quilha, em que se dão os argonéos (fig. 2) e são bancadas para remadores; havendo vento poem-se mastros na Canôa de barlavento, sendo á bolina, e sendo largo ou á poupa em ambas (fig. 4) as Plataformas podem ser entrincheiradas pellos lados com os bailéos dos Navios; em ambos os extremos as canôas tem ferrage para lémes, cujas canas são unidas nas extremidades por hũa barra para o uniforme movimento d'ambos. Estas embarcaçoens compostas são de hu~a conhecida vantagem na passagem de Rios, mormente de pouco fundo, e em dezembarque de tropas, pois a si mesmas se protegem, d'ellas se fáz fôgo com muita facilidade e certeza pois tem immensa estabilidade e mesmo á vella nenhuma // inclinação por cauza do apoio da Canôa de sotavento. Sendo por qualquer cazo neseçaria a retirada, não precizão virár pois são proas ambos os lados. Eu vi, no exercicio em que assima falei, as Canôas fazerem mui rapidamente diversos attaques, e retiradas, embarcarem, e desembarcarem com muita facilidade duas pessas de ferro de calibre 6, pessas e reparos de marinha muito mais pezados que os de Campanha; a estas conhecidas vantagens junta-se a facilidade do transporte, hũa Corvêta do lóte do Voador, ou Calypso, navios muito proprios para o serviço do Rio da Prata, pode sem embaraço levar 8 ou 10 Canôas, os estrados, ou Plataformas, sendo feitos de cavilhas com pórcas, se desarmão, e armão em hũ momento, e ocupão muito pouco lugar: temos por tanto cada corveta, ou navio semilhante com 4 ou 5 embarcaçoens que cada hũa leva bem 40 homens e 2 pessas de Artilharia com hua das quais protege o seu desembarque e com a outra cobre a sua retaguarda: // Quais são as embarcaçoens miudas que apprezentão estas vantagens? A não serem barcas chatas construidas expressamente para este serviço. A grande facilidade de ter as Canôas em hum Paiz de que ellas são as embarcaçoens ordinarias, a pouca despêza, e facilidade de fazêr os estrados, a comodidade do transporte, e a defêza que aprezentão tanto em attaque como em retirada, me fáz parecêr este methodo muito digno de ser empregado no serviço do Rio da Prata.
Ainda que o serviço mais proprio destas jangadas seja para lugares de pouco fundo, pois que embarcação alguma demanda mênos agoa; não posso deichar de as julgar mui adquadas para as praias em que houvér ressáca, ellas não podem ser envolvidas, e embarcádas pellas vágas, o que muitas vezes succede as embarcaçoens de quilha.
Este methodo pode com muita facilidade ser aperfeiçoado a hum ponto extraordinario // Por exemplo pondo cobertas nas Canôas; então seria nececario que o modo de segurar os barrotes dos estrados ás canôas fosse alterado, isto hé que os olhais fossem sobre a coberta mas sempre seguros para o fundo da canôa; couza muito facil e que as tornava de huma segurança tal que már algum por mais grôço que fosse as poderia submergir: Augmentando o numero das canôas isto hé 3 em lugar de 2.
Sou com tudo obrigado a dizêr, que nem este methodo, nem algum outro, deverá ser posto em pratica no Rio da Prata, a não ser nos mezes que decorrem do fim de Setembro ao principio de Fevereiro, sem com tudo afirmar sér impossivel fazêlo nos outros mezes bastante tempestuozos n'aquelle Paiz: mas para isso serião neseçarias medidas que o nosso estado de marinha não possue, e que tomalas levaria mais tempo que o comprehendido entre o prezente, e a epocha que aponto.
Francisco Maximiliano de Sousa
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Fonte
PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/E/004445
Memória sobre a dificuldade de fazer guerra em país cortado de rios e canais sem auxílio de forças marítimas como nas margens do Rio da Prata, por Francisco Maximiano de Sousa. Possui uma prancha com a sugestão dos diferentes tipos de embarcações a utilizar. Data 1810 [datado incorretamente; parece ser de 1816]. 10 pp. não num. [7 pp. + 3 pp. em branco]; 202 x 250 mm.
A transcrição obedece à ortografia original do documento. O documento pode ser visto no sítio do ADB em http://pesquisa.adb.uminho.pt/details?id=1415768
Imagem
- PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/E/004445, Arquivo Distrital de Braga
Breves dados biográficos acerca do autor
Francisco Maximiliano de Sousa era guarda marinha em 1790, tendo sido promovido a 1.º tenente em 1795 e, presumivelmente, a capitão tenente no ano seguinte.
Em 1806 era promovido a capitão de fragata, tendo comandando, em finais de 1807, a corveta Voador na transferência da Corte para o Brasil. Não é certo quando obteve a promoção a capitão de Mar e Guerra, mas é graduado em chefe de divisão em finais de 1817.
Posteriormente, serve como secretário de estado da Marinha no governo nomeado pelas Cortes Constituintes em janeiro de 1821 e comanda uma esquadra portuguesa em 1822-23 no âmbito da guerra da independência brasileira.
O seu nome aparece por vezes, e erradamente, como Francisco Maximiano de Sousa.
Boa tarde,
ResponderEliminarAcabo de ler este artigo, o qual desconhecia.
Francisco Maximiliano de Sousa, é o meu 5º avô, do qual possuo bastante documentação, tanto por meu estudo, como por arquivo familiar.
Li, no seu perfil, que também tem um grande conhecimento em condecorações.
Nesse âmbito, muito gostava de lhe preguntar se sabe a razão, pelo qual, este meu 5º avó teve as condecorações de Leopoldo e Coroa de Ferro na Alemanha. A que que se devia?.
Também gostava de saber, se lhe passou alguma vez, nos estudos que faz, alguma imagem ou reprodução de um quadro do mesmo!. Depois de tanto estudar sobre ele (foi 3 vezes a conselho de guerra!), gostaria de conhecer "a cara" do mesmo.
Muito obrigado, e os meus melhores cumprimentos,
João Sampaio