A história seguinte refere-se a um episódio descrito na História do Marechal Saldanha, de D. António da Costa, publicada em 1879, em que o autor descreve um encontro em 1837 entre o alferes de veteranos José Pires e o marechal, então, marquês de Saldanha, D. João Carlos, levando à lembrança de eventos em 1817 onde as suas vidas se cruzaram de forma dramática, de uma maneira que apenas o combate permite.
Esta narração, em conjunto com as fontes primárias, permite-nos um pequeno vislumbre sobre o que aconteceu a 5 de Maio, quando a retaguarda portuguesa foi atacada, durante a segunda Sortida Portuguesa, que decorreu entre 3 a 6 de Maio de 1817. Nessa altura. José Pires era 2.º sargento da cavalaria, e Saldanha era Coronel comandante do 1.º regimento de infantaria, ambos da Divisão de Voluntários Reais.
Mais especificamente, o combate de Toledo, onde estas duas vidas se entrelaçaram para a eternidade, ocorreu a 5 de Maio, quando as forças portuguesas iniciavam o retorno já a Montevideu, após forragearem na área, com um comboio de trigo.
A retaguarda deste comboio foi atacada pela vanguarda oriental, comandanda muito provavelmente por Juan Lavalleja, subordinado a Frutuoso Rivera.
A retaguarda portuguesa era constituída por tropas do regimento de Saldanha, o 1.º de Infantaria, e estava comandando o sargento mor João Joaquim Pereira do Lago. Eram por volta de 150 homens de infantaria e cavalaria.
Em reação ao ataque oriental, Silveira Pinto envia um reforço das duas armas à retaguarda atacada. Sendo o seu regimento sobre ataque, Saldanha, estando no grosso, com o brigadeiro Bernardo da Silveira Pinto (o comandante de toda a sortida), acaba por ir também apoiar os seus homens, aos primeiros sinais.
Toledo, Uruguai, na saída oeste, próximo de onde ocorreu o ataque oriental sobre a retaguarda portuguesa. |
A história relatada por D. António da Costa é, porém, mais necessária nesta altura, começando em 1837 e retrocedendo depois 20 anos, às coxilhas do Uruguai.
Certa manhã de 1837, por occasião da revolta denominada dos Marechaes, almoçava em Penamacor o marechal Saldanha com os officiaes do seu estado maior, quando lhe anunciaram que um alferes de veteranos lhe pedia licença para o comprimentar.
- Entre o alferes de veteranos.
O alferes entrou. Vinha com o braço direito amputado.
- O senhor marechal já não me conhece?
O marechal fitou n'elle os olhos por momentos, crescendo-lhe successivamente a curiosidade.
- Não me lembro.
Por sua vez cravou n'elle os olhos o alferes.
- Pois não se lembra o sr. Marechal, d'aquella carga em Montevideu, em que lhe mataram o cavallo, e em que um dos seus sargentos ficou sem um braço? Sou eu aquelle sargento.
Os bravos e as palmas do estado maior do marechal não deixaram continuar a narativa do veterano. Que sucedêra? N'essa propria manhã, durante a marcha de Castello Branco para Penamacor, viera Saldanha contando aos seus ajudantes aquella mesma carga e o facto do sargento mutilado. Imagine-se o que ali não foi entre aquelles rapazes, à notável coincidencia. O alferes repetiu então nos pontos capitaes a narrativa de Saldanha, mal sabendo que publicava a segunda edição.
Fôra o caso: marchavam um dia por aquellas planicies sem termo. A alguma distancia um piquete cobria a retaguarda. Saldanha olha para trás e vê relampejarem as espadas que o piquete desembainhára. Suspende-se. Espadas que relampejam, signal é do inimigo. Volta para a retaguarda apressado e chega até o piquete. É a cavallaria de Artigas que lhes vem na pista. Saldanha não espera por mais nada. Na fórma do costume lança logo o cavallo a galope, a toda a brida. Segue-o a sua cavallaria. Sendo o primeiro que chegou, arremessa-se contra a cavallaria contraria. Cae-lhe morto o finissimo cavallo que montava. Está a pé, elle só, cercado de cavallaria inimiga; a investida é furiosa, rodeiam-no, arremettem, mas Saldanha defende-se de uns, ataca outros, fere outros também, a sua valentia, coroada com a felicidade da sua estrella, de todos zomba, parece invulnerável, quasi prodigio parece. Chegam os mais velozes dos seus, Vêem-no a pé, luctando contra todos, um sargento se apeia logo, offerece-lhe o cavallo, monta Saldanha repentinamente, uma espadeirada arremettida contra ele, decepa o braço do sargento; a carga chega ao auge, vacillam os orientaes ao impeto incessante dos portuguezes, retrocedem, debandam, pertence o campo aos nossos, e, com tal exemplo de commandante, que militar dos seus não venceria também? Era aquelle sargento mutilado, que ao almoço do marechal em Penamacor, vinha saudar o guerreiro de Montevideu.
António da Costa, História do Marechal Saldanha (tomo I), Lisboa, Imprensa Nacional, 1879. p.93-94
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LEIA:
A Segunda Sortida Portuguesa e a Ação de Toledo (3 a 6 de Maio de 1817)
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O Encontro de Irmãos de Armas e a Realidade
O alferes de veteranos referido no texto parece ser o então 2.º sargento José Pires, conforme se pode ver numa carta de Carlos Frederico Lecor ao marquês de Aguiar (transcrita no artigo cuja ligação indico atrás), com base nas informações do brigadeiro Silveira Pinto, comandante da sortida.
"O brigadeiro Silveira recomenda o 2.° Sargento José Pires do mesmo Regimento de Cavalaria, o qual portando-se muito valerosamente no dia 5 foi gravemente ferido, e sofreu a amputação de uma mão, e tendo a bem disto muita boa conduta, o recomendo a Sua Majestade para ser promovido a Alferes, podendo passar à Infantaria, onde pode fazer o serviço.
O coronel do 1.° Regimento d'Infantaria João Carlos de Saldanha faz os maiores elogios ao brigadeiro Silveira, pois achando-se junto ao mesmo Brigadeiro, quando o esquadrão do capitão Abreu carregou o inimigo, correu à rectaguarda, envolveu-se com aquele esquadrão, e teve o seu cavalo morto."
Imagem (topo)
- S. Ex.ª Marquez de Saldanha, Marechal do Exercito (1835), in Biblioteca Nacional Digital [aqui]
Bibliografia
- COSTA, António da, História do Marechal Saldanha (tomo I), Lisboa, Imprensa Nacional, 1879;
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