Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo: Parte IV
Desde que marcha de Torres, a 31 de Agosto de 1816 até à Batalha de India Muerta, a 19 de Novembro.
Continua da Parte III [LER]
[28/8/1816]
'No dia 28 porém, tiveram noticias de Portugal, e o Coronel Azeredo teve a satisfação de receber cartas das pessoas que mais amava, e cuja saudade acerba lhe não deixava gozar um só momento, nem dos passatempos que a boa hospitalidade d'estes povos lhe proporcionava, nem do vasto e admiravel espectaculo d'este paiz magestoso.
[31/8]
No dia 31, como acima dissemos, terminou o doce ocio d'esta Capua-americana, e o Coronel fez embarcar os seus cavallos e os dos seus officiaes, e deu ordem para elles o esperarem no pontal de S. Miguel, a setenta legoas de distancia; para este pontal se dirigiu o batalhão, primeiramente embarcando em hiates na lagoa dos Patos, e depois pelo rio de S. Gonçalo, que é navegavel: mas os cavallos apenas embarcaram para atravessar a lagoa, que tem aqui cinco legoas de largura, seguindo depois por terra, até ao dito pontal.
Tendo o Coronel atravessado tambem a lagoa dos Patos, subiu pelo rio de S. Gonçalo duas legoas, e ahi desembarcou, indo acampar o batalhão no logar das Pelotas, que já então era uma bonita povoação,, banhada pelo rio do mesmo nome, o qual vem vazar suas aguas no rio de S. Gonçalo. Chegado ás Pelotas encontrou parte das forças que tinham vindo adiante, e ahi deliberou esperar pelo resto do regimento, que vinha á rectaguarda.
Foi hospedar-se para casa do vigario, que o recebeu com a mesma cordialidade, com que os outros seus hospedes o tinham regalado n'esta longa jornada.
Esta povoação das Pelotas está n'uma situação vantajosissima para' o commercio, sobre o rio do mesmo nome, que é navegavel mais de nove legoas, e desagua no rio de S. Gonçalo, que vem da lagoa Mirim, navegavel mais de setenta legoas. A' famosa lagoa dos Patos pagam o tributo de suas aguas outros muitos rios, que levam a navegação até logares collocados a grandes distancias da costa.
São as casas aqui construidas de tijolo, cobertas de telha, e de um só andar, por causa da força dos ventos, caiadas e muito aceadas. O paiz produz todos os fructos do nosso clima de Portugal: e a não ser o viço da vegetação d'uma terra virgem, e a immensidade dos horisontes, que não offerecem repouso algum á vista, não se acharia differença entre um e outro paiz.
E' aqui o centro e coração da importante e rica provincia do=Rio Grande do Sul. Tudo n'este paiz é grande e maravilhoso, mas muito tem que desbravar a industria humana: os habitantes cultivam apenas uma parte de seus campos, e o resto fica para pastagens de gados. O seu principal negocio consiste nos couros dos bois, e carne sêcca: aquelles são exportados em quantidade enorme para o nosso paiz: a carne sêcca é consummida embarricada nas differentes provincias do Brazil.
Aos grandes proprietarios chamam-se=scharqueadores, por isso que á operação de matar os bois se dá o nome de charquear. Ha proprietario que mata annualmente mais de trinta mil bois; e esta carnificina tem principalmente lugar em dezembro e janeiro, porque sendo os mezes mais ardentes, é quando a carne se sêcca melhor.
A não ser a salubridade do clima, e a pureza dos ares, as epidemias seriam frequentes, porque a podridão do sangue e dos intestinos, de que os campos estão juncados bestes mezes, damnificariam o ar, e produziriam as pestes: pois não são só os bois que os charqueadores matam em quantidade consideravel, mas fazem igual carnificina das egoas e mullas, cujas pelles só aproveitam para as venderem por um preço insignificante. 0 numero de cabeças e ossos de bois é tal, que construem com elles paredes; e nos fornos de telha e tijolo, em vez de lenha, empregam os mesmos ossos. Como a vida se torna facil n'este magnifico paiz, a ociosidade é partilhada por todos os brancos, e só os escravos trabalham nas industrias que deixamos indicadas, que dão comtudo lugar a um trafico immenso, facilitado pelos grandes rios e vias aquaticas, onde se movem centenares de hiates, carregados dos productos do paiz, que vem trazer a abundancia á Europa e á America, e dando a esta provinda uma importancia imponente, que ella tem sabido conservar e augmentar, tornando-a uma das mais opuleutas e magnificas d'este formidavel imperio.
[Outubro e Novembro]
O batalhão passou nas Pelotas os mezes de setembro é outubro, vivendo no seio da abundancia e dos bons commodos. Principalmente o bom vigario, que era irmão d'um Hypolito, redactor do Correio Braziliense tratou o Coronel com tal carinho e generosidade, que nos seus velhos dias, quando o frio dos annos procurava regelar-lhe a memoria, elle o recordava com saudade. Que todo o homem, em qualquer posição, procure sempre fazer o bem e crear sympathias: por obscuro que elle seja, viverá perennemente na memoria das almas bem formadas, e não será inutil a sua passagem sobre a terra.
[...]
[4/11]
Como haviamos dito, nas Pelotas se tinha reunido o regimento todo, o qual embarcou no dia 4 de novembro ás 6 horas da tarde,
[5/11]
e como não houvesse vento, ficaram no mesmo ancoradouro, largando-o no dia 5, pelas 9 horas da manhã; subindo o rio de S. Gonçalo, e andando nesse dia dezoito legoas, foram pernoitar ao sitio dos Canudos. As margens do rio são agradaveis, mas incultas e desertas; e o rio' é mais largo e tão caudaloso como o nosso Douro.
[6/11]
No dia 6, pela 1 hora da noite, seguiram viagem, e duas legoas a montante entraram na grande lagoa chamada = Mirim, = d'onde o rio toma a origem. Tem esta lagoa mais de 70 legoas de comprido, e de largo 40, e em partes menos. No sitio onde o regimento a atravessou tem 30 legoas: a sua navegação é perigosa, por causa dos muitos baixios, e por ser muito varejada pelos ventos: pelo que se tomam pilotos práticos para dirigir os hiates.
N'este dia soprava o vento do quadrante de Nordeste, o que deu á lagoa o aspecto d'um mar agitado por uma grande tormenta: de modo que todos enjoaram, mesmo os que não conheceram tal incommodo na travessia para a America. Felizmente a viagem foi sem risco, e ás 6 horas da tarde do mesmo dia deixaram á popa a turbulenta lagoa, e commettiam um rio que n'ella vasa, chamado = Arroyo de S. Miguel =. Foi á entrada- do dito Arroyo que os hiates pararam, e passaram a noite.
[7/11]
No dia 7 seguiram o curso do rio para montante, e tendo andado cinco legoas, desembarcaram na ponta de S. Miguel, assim chamada de uma fortaleza que os hespanhoes ahi tiveram, e que os portuguezes arrazaram em 1801. O regimento desembarcou numa planicie immensa, sendo já terra hespanhola a que pizavam, e objecto das contendas.
[8-12/11]
Acampou junto ao rio n'este pontal, e ahi se demorou, seguindo as ordens recebidas, os dias 8, 9, 10, 11 e 12. Os cavallos que tinham vindo adiante, estavam magnificos, tendo engordado espantosamente nas bellissimas pastagens d'estas campinas. Era consideravel o numero de cobras, que havia neste campo; os soldados mataram muitas, e houve a fortuna de não haver desgraças. Aqui se reuniu o resto da tropa que formava a brigada,
[13/11]
e assim reforçados marcharam no dia 13 sobre o forte de Santa Thereza, que se rendeu á discripção, sendo a guarnição diminuta, e privada dos me os de defeza.
Dista este forte do de S. Miguel sete legoas, e á sua direita, marchando n'esta direcção, se prolonga uma serra, que cerca uma formidavel lagoa, onde nasce o mesmo rio S. Miguel.
[14/11]
No dia seguinte a brigada permaneceu no seu acampamento;
[15/11]
e no dia 15 continuaram a marcha para Angustura, nome derivado de ser ahi a terra muito estreita, entre o mar e a lagoa, a que acima nos referimos, e que tem seis legoas de comprido sobre uma de largo.
[16/11]
Tambem dista este campo seis legoas do antecedente e cinco de Talayes, para onde se dirigiram no dia 16: ahi encontraram as tropas da vanguarda, que foram reforçadas como se tornava mister, por haver probabilidade de no dia seguinte encontrar o inimigo: e como as direcções em que elle podia achar-se eram diversas,
[17/11]
no dia 17 marcharam em sentidos oppostos, indo o 2." regimento pernoitar a Paso de Canullos, a duas e meia legoas:
[18/11]
e no dia 18 avançou outra tanta distancia sobre Chafalote:
[19/11]
comtudo no dia 19 a vanguarda encontrou-se com o inimigo, com quem se bateu denodadamente.
'No dia 28 porém, tiveram noticias de Portugal, e o Coronel Azeredo teve a satisfação de receber cartas das pessoas que mais amava, e cuja saudade acerba lhe não deixava gozar um só momento, nem dos passatempos que a boa hospitalidade d'estes povos lhe proporcionava, nem do vasto e admiravel espectaculo d'este paiz magestoso.
[31/8]
No dia 31, como acima dissemos, terminou o doce ocio d'esta Capua-americana, e o Coronel fez embarcar os seus cavallos e os dos seus officiaes, e deu ordem para elles o esperarem no pontal de S. Miguel, a setenta legoas de distancia; para este pontal se dirigiu o batalhão, primeiramente embarcando em hiates na lagoa dos Patos, e depois pelo rio de S. Gonçalo, que é navegavel: mas os cavallos apenas embarcaram para atravessar a lagoa, que tem aqui cinco legoas de largura, seguindo depois por terra, até ao dito pontal.
Tendo o Coronel atravessado tambem a lagoa dos Patos, subiu pelo rio de S. Gonçalo duas legoas, e ahi desembarcou, indo acampar o batalhão no logar das Pelotas, que já então era uma bonita povoação,, banhada pelo rio do mesmo nome, o qual vem vazar suas aguas no rio de S. Gonçalo. Chegado ás Pelotas encontrou parte das forças que tinham vindo adiante, e ahi deliberou esperar pelo resto do regimento, que vinha á rectaguarda.
Foi hospedar-se para casa do vigario, que o recebeu com a mesma cordialidade, com que os outros seus hospedes o tinham regalado n'esta longa jornada.
Esta povoação das Pelotas está n'uma situação vantajosissima para' o commercio, sobre o rio do mesmo nome, que é navegavel mais de nove legoas, e desagua no rio de S. Gonçalo, que vem da lagoa Mirim, navegavel mais de setenta legoas. A' famosa lagoa dos Patos pagam o tributo de suas aguas outros muitos rios, que levam a navegação até logares collocados a grandes distancias da costa.
São as casas aqui construidas de tijolo, cobertas de telha, e de um só andar, por causa da força dos ventos, caiadas e muito aceadas. O paiz produz todos os fructos do nosso clima de Portugal: e a não ser o viço da vegetação d'uma terra virgem, e a immensidade dos horisontes, que não offerecem repouso algum á vista, não se acharia differença entre um e outro paiz.
E' aqui o centro e coração da importante e rica provincia do=Rio Grande do Sul. Tudo n'este paiz é grande e maravilhoso, mas muito tem que desbravar a industria humana: os habitantes cultivam apenas uma parte de seus campos, e o resto fica para pastagens de gados. O seu principal negocio consiste nos couros dos bois, e carne sêcca: aquelles são exportados em quantidade enorme para o nosso paiz: a carne sêcca é consummida embarricada nas differentes provincias do Brazil.
Aos grandes proprietarios chamam-se=scharqueadores, por isso que á operação de matar os bois se dá o nome de charquear. Ha proprietario que mata annualmente mais de trinta mil bois; e esta carnificina tem principalmente lugar em dezembro e janeiro, porque sendo os mezes mais ardentes, é quando a carne se sêcca melhor.
A não ser a salubridade do clima, e a pureza dos ares, as epidemias seriam frequentes, porque a podridão do sangue e dos intestinos, de que os campos estão juncados bestes mezes, damnificariam o ar, e produziriam as pestes: pois não são só os bois que os charqueadores matam em quantidade consideravel, mas fazem igual carnificina das egoas e mullas, cujas pelles só aproveitam para as venderem por um preço insignificante. 0 numero de cabeças e ossos de bois é tal, que construem com elles paredes; e nos fornos de telha e tijolo, em vez de lenha, empregam os mesmos ossos. Como a vida se torna facil n'este magnifico paiz, a ociosidade é partilhada por todos os brancos, e só os escravos trabalham nas industrias que deixamos indicadas, que dão comtudo lugar a um trafico immenso, facilitado pelos grandes rios e vias aquaticas, onde se movem centenares de hiates, carregados dos productos do paiz, que vem trazer a abundancia á Europa e á America, e dando a esta provinda uma importancia imponente, que ella tem sabido conservar e augmentar, tornando-a uma das mais opuleutas e magnificas d'este formidavel imperio.
[Outubro e Novembro]
O batalhão passou nas Pelotas os mezes de setembro é outubro, vivendo no seio da abundancia e dos bons commodos. Principalmente o bom vigario, que era irmão d'um Hypolito, redactor do Correio Braziliense tratou o Coronel com tal carinho e generosidade, que nos seus velhos dias, quando o frio dos annos procurava regelar-lhe a memoria, elle o recordava com saudade. Que todo o homem, em qualquer posição, procure sempre fazer o bem e crear sympathias: por obscuro que elle seja, viverá perennemente na memoria das almas bem formadas, e não será inutil a sua passagem sobre a terra.
[...]
[4/11]
Como haviamos dito, nas Pelotas se tinha reunido o regimento todo, o qual embarcou no dia 4 de novembro ás 6 horas da tarde,
[5/11]
e como não houvesse vento, ficaram no mesmo ancoradouro, largando-o no dia 5, pelas 9 horas da manhã; subindo o rio de S. Gonçalo, e andando nesse dia dezoito legoas, foram pernoitar ao sitio dos Canudos. As margens do rio são agradaveis, mas incultas e desertas; e o rio' é mais largo e tão caudaloso como o nosso Douro.
[6/11]
No dia 6, pela 1 hora da noite, seguiram viagem, e duas legoas a montante entraram na grande lagoa chamada = Mirim, = d'onde o rio toma a origem. Tem esta lagoa mais de 70 legoas de comprido, e de largo 40, e em partes menos. No sitio onde o regimento a atravessou tem 30 legoas: a sua navegação é perigosa, por causa dos muitos baixios, e por ser muito varejada pelos ventos: pelo que se tomam pilotos práticos para dirigir os hiates.
N'este dia soprava o vento do quadrante de Nordeste, o que deu á lagoa o aspecto d'um mar agitado por uma grande tormenta: de modo que todos enjoaram, mesmo os que não conheceram tal incommodo na travessia para a America. Felizmente a viagem foi sem risco, e ás 6 horas da tarde do mesmo dia deixaram á popa a turbulenta lagoa, e commettiam um rio que n'ella vasa, chamado = Arroyo de S. Miguel =. Foi á entrada- do dito Arroyo que os hiates pararam, e passaram a noite.
[7/11]
No dia 7 seguiram o curso do rio para montante, e tendo andado cinco legoas, desembarcaram na ponta de S. Miguel, assim chamada de uma fortaleza que os hespanhoes ahi tiveram, e que os portuguezes arrazaram em 1801. O regimento desembarcou numa planicie immensa, sendo já terra hespanhola a que pizavam, e objecto das contendas.
[8-12/11]
Acampou junto ao rio n'este pontal, e ahi se demorou, seguindo as ordens recebidas, os dias 8, 9, 10, 11 e 12. Os cavallos que tinham vindo adiante, estavam magnificos, tendo engordado espantosamente nas bellissimas pastagens d'estas campinas. Era consideravel o numero de cobras, que havia neste campo; os soldados mataram muitas, e houve a fortuna de não haver desgraças. Aqui se reuniu o resto da tropa que formava a brigada,
[13/11]
e assim reforçados marcharam no dia 13 sobre o forte de Santa Thereza, que se rendeu á discripção, sendo a guarnição diminuta, e privada dos me os de defeza.
Dista este forte do de S. Miguel sete legoas, e á sua direita, marchando n'esta direcção, se prolonga uma serra, que cerca uma formidavel lagoa, onde nasce o mesmo rio S. Miguel.
[14/11]
No dia seguinte a brigada permaneceu no seu acampamento;
[15/11]
e no dia 15 continuaram a marcha para Angustura, nome derivado de ser ahi a terra muito estreita, entre o mar e a lagoa, a que acima nos referimos, e que tem seis legoas de comprido sobre uma de largo.
[16/11]
Tambem dista este campo seis legoas do antecedente e cinco de Talayes, para onde se dirigiram no dia 16: ahi encontraram as tropas da vanguarda, que foram reforçadas como se tornava mister, por haver probabilidade de no dia seguinte encontrar o inimigo: e como as direcções em que elle podia achar-se eram diversas,
[17/11]
no dia 17 marcharam em sentidos oppostos, indo o 2." regimento pernoitar a Paso de Canullos, a duas e meia legoas:
[18/11]
e no dia 18 avançou outra tanta distancia sobre Chafalote:
[19/11]
comtudo no dia 19 a vanguarda encontrou-se com o inimigo, com quem se bateu denodadamente.
Retirado de: AGUILAR, Francisco D’Azeredo Teixeira D’, Apontamentos Biographicos de Francisco de Paula D’Azeredo, Conde de Samodães, Porto, Tip. Manoel José Pereira, 1866. pp. 82-sg
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