sábado, 7 de setembro de 2019

O Filho do Marechal


Sebastião Pinto de Araújo Correia nasceu em Viana do Castelo e era, em Novembro de 1813, aos 28 anos, o coronel do Regimento de Infantaria n.º 18, promovido apenas três meses antes. Estava a sua divisão e o Exército nas margens do Adour, defronte de Bayonne, já bem dentro de França. Pequeno nobre do Minho, o mais velho de sete irmãos, era primo de D. António Araújo de Azevedo, antigo ministro da guerra em Lisboa, o que ajuda a explicar ser coronel a uma idade tão precoce. Ainda assim, Sebastião Pinto havia sido prejudicado na antiguidade, por via de um ferimento na cabeça na batalha de Fuentes de Onoro, no dia 5 de maio desse 1811, no comando de Caçadores 6. Esteve 4 meses e meio com parte de doente. Outros tenentes coronéis promovidos de 1809, alguns que conheceremos mais à frente, obtiveram a patente de coronel em 1812, um ano antes.

A 6 de novembro, o  novel coronel de Infantaria 18 pediu e recebeu uma licença de três meses para recuperação em Portugal de uma moléstia que padece, resultado decerto do ferimento em 1811, mas a mesma é posteriormente alterada para ir ao Rio de Janeiro, para tratar na corte assuntos da sua casa. O coronel Pinto viaja para Portugal e não volta ao exército em operações na França para a campanha de 1814.

Ainda que concebamos que a visita de Pinto à corte fosse simplesmente em busca da devida recompensa de um herói da guerra, ferido no serviço real, por especial deferência do seu mentor e ‘pai’, o marechal Beresford, fica também claro que essa estadia se tornou depois em diligência do real serviço, não só decerto pelo transporte dos decretos e demais correspondência a Lisboa, mas por ter dado o seu conselho profissional ao Principe Regente e ao marquês de Aguiar.

Parece também provável que Sebastião Pinto tenha sido autorizado a ir ao Rio de Janeiro, em vez de voltar à campanha, isto é, já de um forma oficiosa, em diligência de serviço. É estranho que um comandante de regimento, por mais protegido que fosse, seja especialmente autorizado a permanecer em licença por 3 meses mais que o inicialmente, sendo depois autorizado a ir o Rio de Janeiro.

No âmbito da divergência de interesses lusos-britânicos que se processava desde finais de 1813, com o afastamento definitivo de uma ameaça francesa sobre Portugal, Beresford terá enviado Pinto com ofícios, à laia de guarda avançada, de forma a recuperar alguma da autoridade face à regência. Nada melhor que enviar um heroi de guerra, oficial de potencial e ferido até numa grande batalha, além de primo de um dos ministros.

As circunstâncias dão a volta, porém, quando Sebastião Pinto participa na idealização da divisão e traz os ofícios, acaba por minar mais ainda a autoridade do marechal general, ainda que não o desejasse. A vontade do Príncipe Regente supercede todas as outras, e a necessidade de pacificar a Banda Oriental e Artigas era o mais importante agora para Portugal, na nova configuração europeia que se esboçava em Viena.

O coronel Pinto tem feito sempre remarcáveis serviços à sua Pátria,” recomenda António de Lemos Pereira de Lacerda, secretário militar do marechal Bereford, a D. António Araújo de Azevedo em carta de 4 de maio de 1814, que Pinto mesmo transportou. Sebastião Pinto parte para o Rio de Janeiro pouco depois dessa data. Lacerda salienta que o seu recomendado “tem constantemente merecido a amizade, e consideração do Chefe do Exercito, que o ama tanto, que se chega a denominá-lo: o filho do Marechal”. É também em abono de Sebastião Pinto que Lacerda intercede por justiça ao seu recomendado, por este  ter entregue os seis irmãos ao serviço do soberano:

Os seus sentimentos a respeito da boa cauza da Monarquia não se limitarão unicamente a servir elle; mas tinha seis irmãos, e todos seis entregou ao serviço do Exercito, e todos seis tem alcançado pelo seu comportamento os Postos em concequencia do bom conceito que tem merecido. Sebastião Pinto como bom irmão os pôs na estrada da honra, e ali os tem cuidadosamente alimentado á custa de sacreficios, e de grandes despezas; e estas, unidas as que elle com sigo proprio tem feito, não podem deixar de ter muito deteorado os seus fundos. Elle aí vai, tem a V. Ex.ª por Parente, e Amigo, e Protector, e tudo se remediará, e o seu merecimento será premiado, porque o nosso Augusto Soberano se não ha de esquecer de fazer justiça.

Tendo sido ferido na cabeça numa das batalhas mais famosas da Guerra Peninsular, Pinto considerou possivelmente que seria uma oportunidade para se apresentar a sua Alteza Real o Príncipe Regente e pedir que se lhe faça justiça. O coronel Pinto vai obter exatamente o que pretende no Rio de Janeiro, uma espécie de debutância na corte, com a proteção do seu primo D. António, ministro do reino no Brasil. A corte está fora de Portugal há já seis anos e apresentando-se um verdadeiro heroi da Guerra europeia, este é recompensado. No aniversário da rainha D. Maria, a 12 de outubro, Sebastião Pinto é promovido a brigadeiro, obtendo o avanço que pretendia.

Já Sebastião Pinto navegava no mares do Atlântico sul, na sua “estrada da honra”, em direitura ao Brasil, o exército português em operações, fora do país desde maio de 1813, celebra a rendição de Soult, o fim da Guerra Peninsular e o exílio de Napoleão em Elba e começa a percorrer a sua estrada do triunfo de regresso à pátria. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Estado Maior: Álvaro da Costa de Sousa de Macedo


O tenente coronel ÁLVARO DA COSTA DE SOUSA DE MACEDO nasceu no Palácio dos Viscondes de Mesquitela, na Calçada do Combro, em Lisboa, a 22 de Agosto de 1789. Era filho de D. José Francisco da Costa de Sousa e Albuquerque, 2.° visconde de Mesquitela, Armador Mor do Reino, e de Maria José de Sousa Macedo, 2.ª viscondessa de Mesquitela.

Alista-se a 5 de Agosto de 1809 no Regimento de Artilharia n.º 4, no Porto, passando, dois meses depois, a 24 de Outubro, ao Regimento de Infantaria n.º 6, na mesma cidade, como Alferes da 5.ª Companhia. No final do ano, a 29 de Dezembro, passa à 2.ª Companhia de Granadeiros do regimento.

A 29 de Novembro de 1810, é promovido a tenente e nomeado ajudante de ordens do coronel Wiliam Moundy Harvey. Este oficial, do mesmo regimento de Álvaro, comandava a brigada portuguesa constituída dos regimentos de infantaria n.º 11 e 23.

Participa na batalha de Albuhera, em Maio de 1811, onde a sua brigada trava brilhantemente cavalaria francesa em linha. Recebe posteriormente a Cruz de Distinção da batalha, outorgada por Espanha.

Em 1812, é ferido na tomada de Badajoz, juntamente com o seu general e o major da Brigada Thomas Peacocke. Um mês depois, a 5 de Maio, é promovido a capitão.

Em 17 de Agosto de 1813, após a morte do seu general, passa a capitão da 2.ª Companhia de Granadeiros, do Regimento de Infantaria n.º 23.

A 27 de Abril de 1814 é promovido a sargento mor do Regimento de Infantaria n.º 11, com antiguidade de 17 de Fevereiro, após ter sido “encarregado de appresentar a Suas Excellencias os Senhores Governadores do Reino os despachos do lllustríssimo e Excellentíssimo Senhor Marechal General Duque da Victoria, relativo ás acções que houverão desde 14 do referido mez de Fevereiro até 1 de Março". Pelo seu serviço durante a guerra, recebe a Cruz da Guerra Peninsular, 1.ª classe, por 5 campanhas.

A 24 de Junho de 1815, com 25 anos de idade, é promovido a tenente coronel e nomeado deputado do Ajudante General da Divisão de Voluntários Reais do Príncipe, embarcando para o Brasil, em Setembro desse ano, onde serve durante a campanha. A 4 de Julho de 1817 é promovido a coronel.

Após a campanhas do sul do Brasil, é promovido a brigadeiro a 26 de Março de 1821, recebendo o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada dois meses antes, a 22 de Janeiro. É o último comandante da Divisão dos Voluntários Reais, assim como Capitão General da Província Cisplatina, quando Carlos Frederico Lecor toma o serviço brasileiro, em Setembro de 1822.
A 18 de Novembro de 1823, após um conflito de um ano entre as forças portuguesas e brasileiras, assina um compromisso com Lecor e as forças portuguesas abandonam Montevideu em Março do ano seguinte. Pelos seus serviços, recebe a Cruz de Ouro de Montevideu.

Já em Portugal, torna-se o governador da Praça de Setúbal em 1824, sendo, em 1828, o encarregado interino do Governo de Armas da província do Minho. 
Em 1830, torna-se o Capitão General e governador da Ilha da Madeira até ao fim da Guerra Civil, sendo promovido a marechal de campo a 2 de Janeiro de 1832. A 26 de Outubro de 1833, é feito conde da Ilha da Madeira e promovido no mês seguinte a tenente general (21 de Novembro).

Após o final da guerra civil, exila-se em França, onde falece em 1835.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo: V (Final)


Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo: Parte V
Desde a Batalha de India Muerta, a 19 de Novembro, até à tomada de Montevideu e início da ocupação portuguesa.

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Com a chegada ao campo inimigo restabeleceu-se a disciplina nas tropas, que estavam bastante faltas d'ella pela sua longa demora nas Pelotas, o que é sempre muito prejudicial aos exercitos, que marcham em paiz estrangeiro. Não foi dos mais atacados da febre d'indisciplina o regimento que commandava o Coronel Azeredo.

Em pequeno numero foram as deserções, e insignificantes as faltas commettidas. Para isto concorreu essencialmente o exemplo e firmeza do Coronel. Para poder punir os soldados apresentou para modêlo a sua propria conducta, e começou castigando as faltas dos officiaes mais graduados do seu regimento. ".

O Tenente-coronel João Chrysostomo Calado, sem solicitar licença, ausentou-se por tres dias, indo á villa do RioGrande. No seu regresso, o Coronel mandou-o immediatamente prender, e deu parte ao Commandante da brigada o Brigadeiro Francisco Homem de Magalhães Quevedo Pizarro: esta falta foi publicada em ordem do regimento, e d'ella aproveitou o reprehendido, que tendo sido sempre um official valente, se tornou depois irreprehensivel.

Ainda então estavam presentes na memoria de todos os officiaes, que faziam esta campanha, as ordens do dia do exercito do Marechal-general Lord Beresford, que nas de 23 d'outubro e 2 do dezembro de 1810 manda lançar a nota de desertor ao official que se conservar ausente do acampamento mais de vinte e quatro horas. Tão sevéro era em punir como indulgente em perdoar, quando a voz da clemencia se podia escutar sem prejuizo da disciplina.'Tambem não soffria a menor quebra na sua dignidade como commandante do regimento, não consentindo que se executasse ordem superior, que lhe não fosse communicada directamente, e tambem intercedia sempre pelos seus subordinados, quando via que os superiores os vexavam sem razão. Isto o tornou amado de officiaes e soldados, que o acompanhavam alegres e cheios de confiança.

Depois dos acontecimentos que acima se referem, teve logar o combate da India-Morta, em que o regimento d'infanteria n.° 2 não tomou parte. Westa acção commandou o General Manoel Sebastião Pinto d'Araujo, e combateu n'ella com grande denodo, como costumava, o Major Jeronymo Pereira de Vasconcellos, estando gravissimamente enfermo quando entrou em fogo : depois d'esta acção passou este official para o regimento do commando do Coronel Azeredo.

A marcha da brigada foi demorada, estacionando por muitos dias nos diversos acampamentos em Roxa e em S. Carlos. A estação era magnifica, pois a marcha se fez desde e mez de novembro até ao fim de Janeiro de 1817, em que as tropas deram entrada na praça de Montevideu ; comtudo este paiz é por tal forma açoitado pelos ventos do poente, chamados pamperos, que mesmo n'esta estação a permanencia nos acampamentos se tornava muito incommoda.

N'essas solidões immensas, regadas pelo Uruguay e pelos seus confluentes, sob o ceo do Cruzeiro, a vida dos expedicionarios se passava na monotonia dos campos, varados pelos ventos, batidos pelas trovoadas, ensopados pelas chuvas meridionaes.

Ahi as saudades da patria, augmentadas pela immensa distancia que a separava, eram exacerbadas pela falta de conforto, pelo máo sustento, pela pequena e demorada paga. O pão era de péssima qualidade, e ainda assim diminuido de seis onças de pêzo sobre o que determinava a ordenança; o serviço do commissariado era feito só com a mira no ganho immoral; e a carne mesma, não obstante a abundancia do paiz, era por vezes tão ruim, que os soldados a recusavam, e não tinham que comer. No meio d'estas inclemencias e contrariedades, o regimento do commando do Coronel Azeredo não leve um unico desertor desde a sua marcha das Pelotas pelo pontal de S. Miguel, onde os dois paizes s'extremam, até á praça de Montevideu, sobre o rio da Prata: por este motivo, o Capitão-general commandante em chefe elogiou, em ordem de divisão de 7 de março de 1817, o excellente comportamento do Coronel e do regimento que commandara n'esta longa e penosa marcha.

A cidade de Montevideu, edificada n'uma peninsula, tem um aspecto risonho pela sua construcção em amphitheatro: suas ruas não são calçadas, e as casas tem apenas um andar com terrassos servindo de telhados. A falta d'aguas a que está sujeita, obriga os habitantes a aproveitar aquellas que provém das chuvas, que recolhem em cisternas. No tempo em que a expedição portugueza chegou ao Rio da Prata estava Montevideu n'um estado florescente: mais tarde as guerras continuas, os bombardeamentos e as devastações não interrompidas tem enfraquecido o seu primitivo esplendor. Não obstante todos estes desastres e calamidades, as republicas argentinas tem progredido, e segundo a descripção de mr. Martin de Moussy, a civilisação e os fructos da liberdade mesmo incompleta apparecem por cima das ruinas e dos massacres.

Ao contemplar o vasto golfo do Rio da Prata, o Coronel Azeredo não pôde deixar de sentir a impressão d'enthusiasmo que transparece nos cantos inspirados de Cooper, Echeverria e Gongol, poetas que de diversas regiões do globo vieram celebrar as grandezas do vasto imporio das aguas do Uruguay e do Paraná, e prestar a sua admiração ás interminaveis planicies, e aos pampas, de que se compõe este paiz na sua magestosa uniformidade, cujos limites são só o horisonte. Um porto de mar com uma abertura de cincoenta legoas e com a extensão de sessenta, deve ser o mais admiravel panorama. Assim elle serve de ponto de reunião ás esquadras de todas as nações da terra, e pelos rios que n'elle desaguam são levados e conduzidos os productos d'importação e exportação d'esta vasta e esplendida região, a que Martin de Moussy déra o nome de Mesopotamia argentina.

Esta bella região tem sido o theatro de guerras devastadoras. Na época em que os portuguezes foram ao Rio da Prata, a historia das suas luctas estava apenas em começo. Artigas assolava as ricas provincias argentinas, declarando-se o defensor da liberdade e dos povos. O exercito portuguez veio tomar parte nesta lucta, e apesar de manter inalteraveis os seus creditos grangeados noutras campanhãs, não concorreu senão para aggravar as desgraças da mãe patria, pelas despezas que lhe causou sem proveito algum, e com prejuizo, porque da oceupação de Montevideu tirou a Hespanha pretexto para não restituir Olivença depois da paz geral, como se estipulou no tratado de Vienna.

Os louros ceifados nos campos de batalha na longa lucta da peninsula pelo exercito portugues, não murcharam nas planicies do Rio da Prata, e o estandarte da cruz quinqnipartida manteve-se glorioso; mas dos sacrifícios e fadigas dos portuguezes só tirou proveito a ingrata colonia brazileira, que rasgou as entranhas da mãe, que a concebêra. Mais tarde ella mesma teve de perder a conquista que lhe grangearam as armas portuguezas, porque o seu funesto exemplo foi seguido pela antiga colonia hespanhola; teve ella de amargar durante quatro annos de anarquia sanguinaria a sua emancipação, para depois se entregar durante vinte annos ao despotismo furioso de Rosas, até que vencido por Urquizà, se fez a constituição de Santa Fé, que hoje prepara melhojes destinos ás vastas provincias argentinas.

Apenas entrada a expedição em Montevideu foi o regimento commandado pelo Coronel Azeredo, e que fazia parte da brigada capitaneada pelo Rrigadeiro Pizarro, destinado para a guarnição da praça, fazendo destacamentos sobre o forte do Serro e varias ilhotas, que ha na bahia. O tempo se passou no serviço de guarnição, adoçado por.não interrompida serie de divertimentos e bailes, em que os habitantes da cidade muito se deleitavam, como é habitual em todos os povos que participam do sangue hespanhol.
O serviço do exterior da praça era feito pela primeira brigada. Pertencia-lhe vigiar o inimigo, que se abrigava nas circumvisinhanças do recinto, e cobrir a praça. Faziam-se sortidas de tempos a tempos, e estas traziam o proveito de se fazerem prezas no campo inimigo.


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CONHEÇA A BIOGRAFIA DESTE OFICIAL AQUI

Retirado de: AGUILAR, Francisco D’Azeredo Teixeira D’, Apontamentos Biographicos de Francisco de Paula D’Azeredo, Conde de Samodães, Porto, Tip. Manoel José Pereira, 1866. pp. 82-sg

Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo - IV


Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo: Parte IV
Desde que marcha de Torres, a 31 de Agosto de 1816 até à Batalha de India Muerta, a 19 de Novembro.

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[28/8/1816]
'No dia 28 porém, tiveram noticias de Portugal, e o Coronel Azeredo teve a satisfação de receber cartas das pessoas que mais amava, e cuja saudade acerba lhe não deixava gozar um só momento, nem dos passatempos que a boa hospitalidade d'estes povos lhe proporcionava, nem do vasto e admiravel espectaculo d'este paiz magestoso.

[31/8]
No dia 31, como acima dissemos, terminou o doce ocio d'esta Capua-americana, e o Coronel fez embarcar os seus cavallos e os dos seus officiaes, e deu ordem para elles o esperarem no pontal de S. Miguel, a setenta legoas de distancia; para este pontal se dirigiu o batalhão, primeiramente embarcando em hiates na lagoa dos Patos, e depois pelo rio de S. Gonçalo, que é navegavel: mas os cavallos apenas embarcaram para atravessar a lagoa, que tem aqui cinco legoas de largura, seguindo depois por terra, até ao dito pontal.

Tendo o Coronel atravessado tambem a lagoa dos Patos, subiu pelo rio de S. Gonçalo duas legoas, e ahi desembarcou, indo acampar o batalhão no logar das Pelotas, que já então era uma bonita povoação,, banhada pelo rio do mesmo nome, o qual vem vazar suas aguas no rio de S. Gonçalo. Chegado ás Pelotas encontrou parte das forças que tinham vindo adiante, e ahi deliberou esperar pelo resto do regimento, que vinha á rectaguarda.

Foi hospedar-se para casa do vigario, que o recebeu com a mesma cordialidade, com que os outros seus hospedes o tinham regalado n'esta longa jornada.

Esta povoação das Pelotas está n'uma situação vantajosissima para' o commercio, sobre o rio do mesmo nome, que é navegavel mais de nove legoas, e desagua no rio de S. Gonçalo, que vem da lagoa Mirim, navegavel mais de setenta legoas. A' famosa lagoa dos Patos pagam o tributo de suas aguas outros muitos rios, que levam a navegação até logares collocados a grandes distancias da costa.

São as casas aqui construidas de tijolo, cobertas de telha, e de um só andar, por causa da força dos ventos, caiadas e muito aceadas. O paiz produz todos os fructos do nosso clima de Portugal: e a não ser o viço da vegetação d'uma terra virgem, e a immensidade dos horisontes, que não offerecem repouso algum á vista, não se acharia differença entre um e outro paiz.

E' aqui o centro e coração da importante e rica provincia do=Rio Grande do Sul. Tudo n'este paiz é grande e maravilhoso, mas muito tem que desbravar a industria humana: os habitantes cultivam apenas uma parte de seus campos, e o resto fica para pastagens de gados. O seu principal negocio consiste nos couros dos bois, e carne sêcca: aquelles são exportados em quantidade enorme para o nosso paiz: a carne sêcca é consummida embarricada nas differentes provincias do Brazil.

Aos grandes proprietarios chamam-se=scharqueadores, por isso que á operação de matar os bois se dá o nome de charquear. Ha proprietario que mata annualmente mais de trinta mil bois; e esta carnificina tem principalmente lugar em dezembro e janeiro, porque sendo os mezes mais ardentes, é quando a carne se sêcca melhor.

A não ser a salubridade do clima, e a pureza dos ares, as epidemias seriam frequentes, porque a podridão do sangue e dos intestinos, de que os campos estão juncados bestes mezes, damnificariam o ar, e produziriam as pestes: pois não são só os bois que os charqueadores matam em quantidade consideravel, mas fazem igual carnificina das egoas e mullas, cujas pelles só aproveitam para as venderem por um preço insignificante. 0 numero de cabeças e ossos de bois é tal, que construem com elles paredes; e nos fornos de telha e tijolo, em vez de lenha, empregam os mesmos ossos. Como a vida se torna facil n'este magnifico paiz, a ociosidade é partilhada por todos os brancos, e só os escravos trabalham nas industrias que deixamos indicadas, que dão comtudo lugar a um trafico immenso, facilitado pelos grandes rios e vias aquaticas, onde se movem centenares de hiates, carregados dos productos do paiz, que vem trazer a abundancia á Europa e á America, e dando a esta provinda uma importancia imponente, que ella tem sabido conservar e augmentar, tornando-a uma das mais opuleutas e magnificas d'este formidavel imperio. 

[Outubro e Novembro]
O batalhão passou nas Pelotas os mezes de setembro é outubro, vivendo no seio da abundancia e dos bons commodos. Principalmente o bom vigario, que era irmão d'um Hypolito, redactor do Correio Braziliense tratou o Coronel com tal carinho e generosidade, que nos seus velhos dias, quando o frio dos annos procurava regelar-lhe a memoria, elle o recordava com saudade. Que todo o homem, em qualquer posição, procure sempre fazer o bem e crear sympathias: por obscuro que elle seja, viverá perennemente na memoria das almas bem formadas, e não será inutil a sua passagem sobre a terra.

[...]

[4/11]
Como haviamos dito, nas Pelotas se tinha reunido o regimento todo, o qual embarcou no dia 4 de novembro ás 6 horas da tarde, 

[5/11]
e como não houvesse vento, ficaram no mesmo ancoradouro, largando-o no dia 5, pelas 9 horas da manhã; subindo o rio de S. Gonçalo, e andando nesse dia dezoito legoas, foram pernoitar ao sitio dos Canudos. As margens do rio são agradaveis, mas incultas e desertas; e o rio' é mais largo e tão caudaloso como o nosso Douro.

[6/11]
No dia 6, pela 1 hora da noite, seguiram viagem, e duas legoas a montante entraram na grande lagoa chamada = Mirim, = d'onde o rio toma a origem. Tem esta lagoa mais de 70 legoas de comprido, e de largo 40, e em partes menos. No sitio onde o regimento a atravessou tem 30 legoas: a sua navegação é perigosa, por causa dos muitos baixios, e por ser muito varejada pelos ventos: pelo que se tomam pilotos práticos para dirigir os hiates.
N'este dia soprava o vento do quadrante de Nordeste, o que deu á lagoa o aspecto d'um mar agitado por uma grande tormenta: de modo que todos enjoaram, mesmo os que não conheceram tal incommodo na travessia para a America. Felizmente a viagem foi sem risco, e ás 6 horas da tarde do mesmo dia deixaram á popa a turbulenta lagoa, e commettiam um rio que n'ella vasa, chamado = Arroyo de S. Miguel =. Foi á entrada- do dito Arroyo que os hiates pararam, e passaram a noite.

[7/11]
No dia 7 seguiram o curso do rio para montante, e tendo andado cinco legoas, desembarcaram na ponta de S. Miguel, assim chamada de uma fortaleza que os hespanhoes ahi tiveram, e que os portuguezes arrazaram em 1801. O regimento desembarcou numa planicie immensa, sendo já terra hespanhola a que pizavam, e objecto das contendas.

[8-12/11]
Acampou junto ao rio n'este pontal, e ahi se demorou, seguindo as ordens recebidas, os dias 8, 9, 10, 11 e 12. Os cavallos que tinham vindo adiante, estavam magnificos, tendo engordado espantosamente nas bellissimas pastagens d'estas campinas. Era consideravel o numero de cobras, que havia neste campo; os soldados mataram muitas, e houve a fortuna de não haver desgraças. Aqui se reuniu o resto da tropa que formava a brigada, 

[13/11]
e assim reforçados marcharam no dia 13 sobre o forte de Santa Thereza, que se rendeu á discripção, sendo a guarnição diminuta, e privada dos me os de defeza.
Dista este forte do de S. Miguel sete legoas, e á sua direita, marchando n'esta direcção, se prolonga uma serra, que cerca uma formidavel lagoa, onde nasce o mesmo rio S. Miguel.

[14/11]
No dia seguinte a brigada permaneceu no seu acampamento; 

[15/11]
e no dia 15 continuaram a marcha para Angustura, nome derivado de ser ahi a terra muito estreita, entre o mar e a lagoa, a que acima nos referimos, e que tem seis legoas de comprido sobre uma de largo. 

[16/11]
Tambem dista este campo seis legoas do antecedente e cinco de Talayes, para onde se dirigiram no dia 16: ahi encontraram as tropas da vanguarda, que foram reforçadas como se tornava mister, por haver probabilidade de no dia seguinte encontrar o inimigo: e como as direcções em que elle podia achar-se eram diversas, 

[17/11]
no dia 17 marcharam em sentidos oppostos, indo o 2." regimento pernoitar a Paso de Canullos, a duas e meia legoas: 

[18/11]
e no dia 18 avançou outra tanta distancia sobre Chafalote: 

[19/11]
comtudo no dia 19 a vanguarda encontrou-se com o inimigo, com quem se bateu denodadamente.

[CONTINUA]


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Retirado de: AGUILAR, Francisco D’Azeredo Teixeira D’, Apontamentos Biographicos de Francisco de Paula D’Azeredo, Conde de Samodães, Porto, Tip. Manoel José Pereira, 1866. pp. 82-sg

Memórias do tenente coronel António José Claudino de Oliveira Pimentel - III (final)


Memórias do tenente coronel António José Claudino de Oliveira Pimentel: seleção (Parte III)
Entre o início da marcha terrestre, a 7 de Julho, até à última entrada das memórias deste oficial em 4 de Agosto, em que faz alto em Mostardas. 
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Lamento que a pequena parte da memoria, unica que possuo, não abranja mais que o primeiro mez de marcha. Se a tivesse completa, ser-me-ia facil indicar aos leitores o verdadeiro itinerario seguido pela vanguarda da divisão de voluntarios reaes, indicando dia por dia todas as distancias percorridas, as datas das marchas e dos descansos com a indicação dos logares de campo ou povoado e dos incidentes occoridos. Reproduzindo porém aqui o que d’este itinerario me resta, póde fazer-se idéa do que seria o todo.

[7.7]
 [...] Partindo de Imbaú, a vanguarda chegou no dia 7 de julho a Villa Nova, povoação de quarenta a cincoenta vizinhos e á distancia de 18 leguas de Santa Ctharina. 

[9.7]
No dia 9 foi aquartelar-se em Laguna, villa bastante povoada em relação ao paiz, e que está situada na margem esquerda do rio Tubarão, o qual vae desaguar no mar a meia legua da villa. Na sua barra podem entrar pequenas sumacas. A marcha foi de 6 leguas.

[10.7]
No dia 10 houve descanso em laguna, e no dia 11 passou a vanguarda para o lado direito do rio a 1 legua de distancia. 
No dia 12, com 4 ½ leguas de marcha, acampou em Porto Rebello. 
No dia 13, com 6 leguas de marcha, teve um bom acampamento junto á praia. 
No dia 14, novo acampamento 5 leguas adiante, junto ao rio Vrussango. 
No dia 15, tendo passado em canoas o rio Vrussango, foi a vanguarda acampar junto á Barra Velha, com 6 leguas de marcha. 
No dia 16 acampou em Conventos, tendo passado em muito más canoas o rio Araringoá, que é muito caudaloso. 
No dia 17, com 5 leguas de marcha, teve um pessimo acampamento em Lagoinhas, entre cómoros de areia. 
No dia 18, mais 7 leguas adiante, fez-se o acampamento junto ao mar, em Aguas Claras.
No dia 19, adiante 5 leguas, houve soffrivel acampamento em Torres, estancia com duas casas. 
Nos dias 20, 21 e 22 houve descanso n’este acampamento [...] É preso o capitão Pimenta por falta de subordinação e mandar o seu camarada roubar milho para os seus cavallos. Convoca os officiaes para uma conjuração contra mim, etc. [...]
No dia 23 teve a vanguarda muito mau acampamento na Cerrca dos Pregos. Tinha sido a marcha de 5 leguas. [Recomenda o itinerario que se deve marchar sempre pela praia por ser o melhor caminho.] 
No dia 24, com marcha de 6 leguas, fez-se o acampamento junto á estancia do Victorino. 
No dia 25, tambem a 6 leguas, foi o acampamento junto á estancia do Ignacinho. 
No dia 26, com marcha de 4 leguas, acampou a vangaurda na margem esquerda do rio Tramandalú.
No dia 27, tendo passado com incrivel trabalho o rio Tramandalú, acampou a vanguarda junto á estancia de Thomas Jozé, tendo feito marcha de 4 leguas.

[...] No dia 28 houve descanso [...] O marechal de campo Sebastião Pinto parte para o Rio Grande, deixando-me o commando da vanguarda. Esta inopinada partida teve por fim desmanchar todas as disposições que o brigadeiro Bernardo da Silveira havia traçado, na qualidade de quartel mestre general, para se effectuar a marcha da divisão para Pellotas conforme as ordens do general em chefe. O marechal Pinto, antes de partir, mostrou-me uma carta de Bernardo da Silveira, em que lhe dizia que a vanguarda devia embarcar em S. Caetano, seguindo para Pellotas, onde os officiaes se podiam fornecer dos effeitos necessarios para continuarem a marcha para a Provincia de Montevideu. O marechal Pinto, rival e inimigo irrreconciliavel de Silveira, protestou com veemente acrimonia contra as disposições d’este último, e partiu a toda a pressa para o Rio Grande. Eu não posso deixar de consignar n’estes meus apontamentos o receio que tenho de futuras desordens muito prejudiciaes ao serviço de el-rei, porque noto uma interminavel indisposição do general Pinto contra o brigadeiro Silveira, o qual, na qualidade de quartel mestre general, deve dispor tudo quanto é relativo ás marchas das columnas, segundo as ordens do general em chefe. Pelo que hoje observei, o general Pinto parece-me disposto a obrar conforme ao seu capricho, sem attender a consideração alguma. Isto será sem duvida muito prejudicial ao serviço. Oxalá que eu me engane, mas o que vejo é um principio de discordia entre dois officiaes generaes e ambos chefes de departamentos. Alem d’isso temo que o orgulho e ignorancia do marechal Pinto possam produzir males incalculaveis na operações ulteriores, etc. etc. [...]

No dia 29 de julho a vanguarda acampou junto a um grande matto em Porteira da Cidreira, tendo feito marcha de 6 leguas. 
No dia 30 acampou junto á casa do Quintão, onde havia deposito; a marcha foi tambem de 6 leguas. 
No dia 31 fez-se acampamento em Velho Oliveira a 5 leguas do antecedente. 
No dia 1.º de agosto, adiante 5 leguas, foi o acampamento em Povos. 
No dia 2 fez-se o acampamento junto á casa do defunto Machado, onde havia deposito: a marcha foi de 5 leguas. 
No dia 3 tambem houve acampamento junto ao logar de Mostardas, que terá uns quarenta vizinhos; a marcha foi de 5 leguas. 

[O dia 4 de agosto foi o ultimo indicado no itinerario, e foi destinado a descanso.]

* * *

Retirado de: PIMENTEL, Júlio Machado de Oliveira, Memorial Biographico de um militar ilustre, O General Claudino Pimentel, Lisboa, Imprensa Nacional, 1884, pp.75-77

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domingo, 1 de setembro de 2019

Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo - III


Memórias do coronel Francisco de Paula Azeredo: Parte III
Na continuação da marcha terrestre de 5  de Agosto de 1816, em que o coronel e o 2.º Regimento de Infantaria saiem Torres até 31 do mesmo mês, quando estão em S. José do Norte.

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Parte I [LER]

[5 de Agosto de 1816]
No dia 5 sahiram das Torres e foram pernoitar, seguindo a beira-mar, a uma roça, a que denominaram = cerca dos prègos =por ter a madeira que a circuita sido pregada com prégos em vez de ser entrançada com vimes, como é geralmente usado. 
Este sitio, a tres legoas da ultima estação, é lindo, coberto de bello e frondoso arvoredo, entre o qual s'encontram madeiras raras: quando os soldados accenderam as fogueiras, os paus lançavam um aroma suavissimo, e pareciam tão amarellos como açafrão. Foi em sitio tão ameno, onde se encontravam excellentes pastagens para os cavallos, que das quatro para as cinco horas da tarde os accommetteu uma violenta tempestade, que os deixou todos em agua : tendo porém soprado o nordeste, aclarou o tempo, e se fizeram fogueiras para os soldados s'enxugarem; quando s'entregavam ao descanço e o somno lhes carregava os olhos, veio antes do romper d'alva nova tempestade, com trovões horrorosos, que alagou o campo duranto tres horas, sendo tão formidavel que encheu a todos de pavor. Assim um sitio tãn aprazivel se lhes tornou um logar infernal, d'onde sahiram, apenas amanheceu, alagados até aos ossos, esperando que a fortuna lhes deparasse uma melhor noite para o dia seguinte, que foram os 6 d'agosto.

[6 de Agosto]
N'este dia avançaram tres legoas, indo ficar ao campo do = Victorino =, nome que tomou de um colono, que alli edificou uma casa, á qual juntou nm extenso passal, que elle não podia cultivar inteiro. Todo elle se achava cheio de pastagens e feno, que não se colhe nem guarda, porque n'este paiz, onde ha innumeros cavallos, andam estes sempre ao pasto, e nunca entram em cavalhariça—, que não ha em parte alguma. Quem faz jornadas marcha a cavallo, e quando o sente fatigado, lança o laço ao primeiro que encontra, sella-o com os arreios do outro, monta-o, e abandona o primeiro, que por seu turno vai substituir o ultimamente sahido.
Era assim como marchavam n'esta expedição os guias, que a conduziam.

[7 de Agosto]
No dia 7 vieram acampar ao Ignacinho, que tomou este nome d'outro colono, chamado Ignacio, que fez alli a sua habitação e residencia habitual. Este campo dista tres legoas do antecedente, está geralmente inculto, e apenas contém arvores silvestres.
Ahi se fez sentir uma nova trovoada, que foi comtudo menos forte do que a antecedente. O Coronel dormia no seu carro de jornada, onde levava a bagagem, de modo que assim tinha as commodidades compativeis com a falta delas em tal localidade.

[8 de Agosto]
No dia 8 continuaram pelo mesmo campo, andando quatro legoas até ao sitio denominado = Capão do Tramandahi = Capão é denominação geral de todos os locaes onde ha arvoredos no meio dos campos: 

[9 de Agosto]
e Tramandahi era o nome de um rio que lhes ficava na vanguarda, e que passaram no dia 9: encontrando-o na marcha d'este dia a uma legoa de distancia: é este rio muito largo e caudaloso, formado no encontro de duas lagoas que circumdam a cordilheira, de que já falíamos, na estação das Torres; vindo as ditas lagoas de uma e outra banda da cordilheira dão origem a este rio, que o batalhão passou com grande difficuldade em canoas, por não se ter podido fazer jangada. Os cavallos e bois passaram a nado, como é costume no paiz. 
Porém ainda n'este dia tiveram de atravessar outro rio menos importante, chamado = Thomaz José = nome do colono, que construiu uma casa n'um campo visinho, onde o batalhão veio pernoitar. Sobre este rio havia uma arruinada ponte de madeira, por onde passou com muito custo o batalhão, indo os cavallos a nado; de poucos que passaram pela ponte foram alguns ao rio, que se afogaram.

[10 de Agosto]
No dia 10 descançaram no campo acima referido, e na casa de Thomaz José já não existiam senão dous filhos do mesmo e seus escravos. Aqui vieram alguns habitantes vender laranjas e carne de porco, e se bem que os preços fossem pouco favoraveis, porque os vendedores conheciam a precisão, serviram comtudo de bastante, por serem generos de que o batalhão estava desprovido. 
Os soldados sempre curiosos de investigarem o paiz, que exploram, deram com tartarugas, que mataram, e comeram. N'uma se encontraram ovos perfeitissimos, redondos como bolas de bilhar, e com o gosto dos das gallinhas.

[11 de Agosto]
Levantando o campo no dia 11, dia de S. Lourenço, seguiram por uma planicie mais arenosa e despegada do que a antecedente, indo os soldados descalços, por causa da arêa que os não deixava andar. Tendo feito uma marcha de cinco legoas, vieram pernoitar no sitio denominado == Ponteira da Silveira. 
O terreno, como já dissemos, é arenoso, mas os pastos são immensos e cobertos de grandes manadas de bois, cavallos, corças e veados. O numero das aves tambem ê consideravel: alli se voem gallinhas d'enorme grandeza, e patos maiores do que os nossos patos reaes: os abestruzes percorrem estas campinas com a ligeireza do raio, não podendo voar com as azas, que só lhes servem d'auxiliares na carreira. 
Junto ao sitio do acampamento havia um bosque, onde os soldados foram explorar, e ahi encontraram um animal que é mettido todo dentro d'uma caixa de differentes côres, só pelo serro, e pela barriga tem pêllo como um porco; a cabeça tambem se assemelha á d'este animal, e os pés e mãos são como as do lagarto.
Quando se lhe toca, recolhe-se todo dentro da caixa, como fazem as tartarugas e kágados: chama-se=tatu=conhecido por todos os naturalistas: a sua carne é excellente e semelhante a do porco: os cornetas do batalhão o mataram e comeram, achando-o optimo.

[12 de Agosto]
No dia 12 marcharam por um campo em tudo semelhante ao antecedente, e como terminasse a serra, que o limitava á direita, a planicie ficou sem limites, estendendo-se pelo sertão a distancias incalculaveis. 
N'esta marcha encontraram um tigre, que se retirou vagarosamente aos apupos que lhe fizeram os soldados. 
Ao fim de quatro legoas vieram acampar a = Quintão =, onde habitava um sapateiro, com sua mulher, filhas e mais familia. 
Informou este ao Coronel das muitas particularidades do local, sobre suas producções e animaes domesticos e ferozes que o povoavam: aqui se terminava a freguezia da = Serra — que tem mais de vinte legoas d'extensão: a igreja está edificada nas abas da N montanha, acima descripta; ahi é muito mais compacta a população, pois ha moradas de casas de meia em meia legoa, ao passo que longe das abas da serra apenas as ha de seis e oito legoas umas das outras: d'onde resulta que a maioria dos habitantes nunca ouvem missa, e raras vezes se confessam: até os proprios filhos baptisam em casa, e frequentemente só vão receber os santos oleos depois de serem crescidos, ou quando vão para se casarem.
A este campo vieram os pretos vender pão mal manipulado, laranjas, e = tatus - ; estes foram vendidos a 80 reis cada um, e os soldados os comeram com appetite. 

[13 de Agosto]
No dia 13 deixaram este campo, e a excellente familia do sapateiro, que pelas maneiras mostrava um tracto mais ^requente do que o local indicava.
Dirigiram a marcha sobre um local, a que chamam = Barros-novos = onde habitava uma velha, por nome D. Quiteria, viuva d'um official de milicias, chamado Barros, donde veio o nome ao sitio, em que edificou a sua casa, pois já havia construido outra d'ahi distante duas legoas, a que chamaram = Barros-velhos =. Vivia esta velha com os seus escravos, e possuia grande extensão de terrenos, com muitos gados que vendia por preços favoraveis, taes como os cavailos a 2#400 reis, bois bravos a 2$000, e mansos a 4$000 reis, mullas bravas a 960, e burros bravos a 320, e vitellas a 600 reis, tudo em dinheiro fraco. 

[14 de Agosto]
Dista este sitio quatro legoas do antecedente, e outras quatro do seguinte, onde vieram ficar no dia 14, chamado = Cacimbas = nome derivado das lagoas, que o cercam, que no paiz são chamadas assim: havia ahi apenas duas moradas de casas.

[15 de Agosto]
Foi no dia 15, que chegaram, depois de quatro legoas de marcha, a S. Simão, onde havia quatro casas com seus habitadores, que tinham gados e hortaliças em abundancia. 
Proximo d'este logar se andava edificando uma nova povoação, a que deram o nome de = Povos =. 
Tambem n'esté sitio estava um deposito de mantimento para a tropa, como já se tinham encontrado outros, distanciados de quinze a dezeseis legoas. 
Aos soldados dava-se um dia ração de bolaxa, outro de farinha de pau, e outro de arroz: recebiam tambem ração de cachaça; e a carne era dos bois que se laçavam no caminho, pelos quaes os proprietarios recebiam vales, que o governo pagava á razão de 2&660 por cada boi. 
Todos os guias e condactores de bagagens vinham a cavallo; pois n'aquelle paiz ninguem sahe de casa a pé, e até os que conduzem gados, ovelhas, carneiros, etc, para pastarem pelas suas illimitadas planicies, andam sempre a cavallo, e com uma destreza maravilhosa.

[16 de Agosto]
No dia 16, depois de levantado o campo, veio um violento pé de vento, que fez obscurecer o ar; sendo necessario que os soldados se lançassem por terra, para não serem levados pelos ares: durou isto alguns minutos, ao que se seguiu uma violentissima tempestade com chuva e saraiva, e como alli não havia abrigo continuaram a marchar, e duas horas depois o tempo serenou e andaram tres legoas, indo pernoitar ao sitio dos=Gagos=assim chamado por ter tido por primeiros povoadores dois irmãos, ambos gagos, a quem o então proprietario, velho de setenta annos, tinha comprado todo o terreno com suas casas, duas legoas em torno, por 600)51000 reis.
Este velho tinha aformoseado o local, que povoara de laranjeiras, limoeiros e limeiras; não tinha visto passar ainda tropa alguma n'estes sitios, e veio pedir para que o não prejudicassem nem lhe estragassem o seu predio; pedido bem inutil, porque o regimento estava na melhor disciplina.
Era este homem natural de Miranda do Douro, d'onde tinha sabido na idade de quatorze annos, casando e estabelecendo-se n'este paiz: tinha cinco filhos todos casados e vinte e sete netos. A presença d'esta tropa toda portugueza excitou no bom velho uma viva saudade pela patria: este nome sempre caro fere todas as cordas d'alma, qualquer que seja o lapso de tempo decorrido desde que se tenha abandonado.

[17 de Agosto]
No dia 17 seguiram para o logar das = Mostardas = o maior que se encontra desde a Laguna, pois tem quarenta casas: e pela primeira vez, desde aquella viila, pode a tropa aquartellar-se; pelo que descançaram ahi no dia 18, e só a 19 proseguiram na sua marcha.
O Coronel hospedou-se nas Mostardas, em casa d'um negociante, natural de Braga, e no dia 18 como era domingo, ouviram missa, dita na igreja pelo Vigario, que era natural de Sepães, proximo a Guimarães, d'onde tinha vindo para a America em 1811, depois de actos menos regulares praticados na sua terra. 
A freguezia das Mostardas estende-se desde Barros-novos até nove legoas adiante d'este logar, tendo assim vinte e quatro legoas, e apenas mil almas de sacramentos. 

Aqui já se fabrica pão de trigo e de milho, e se faz menos uso da farinha de pau: ha menos pastos, mas está muito melhor cultivado o terreno. E' o clima n'este paiz muito semelhante ao de Portugal, e n'este dia, que corresponderia a igual data de fevereiro, estava frigidissimo, soprando o nordeste.

Detraz d'esta povoação começa a vêr-se a grande = lagoa dos Patos = que vai desde S. Pedro do Rio-Grande a Portalegre, e ainda mais adiante. A largura d'esta lagoa é formidavel, excedendo a quarenta legoas em partes, dando logar a uma navegação extensa.

As casas n'este paiz são em geral feitas de madeira, e estão entrelaçadas sem prégos nem ferro de qualidade alguma: em vez d'isto atam as differentes peças das casas com cordas de boi, e depois enchem tudo com barro, e sobre este lançam bosta d'aquelle animal: o telhado é coberto de junco sobre a armação, que tambem não é pregada, mas só atada como dito fica. As portas são de coucinho, e fechadas com taramellas: dão ás casas o nome de ranchos ou palhoças.

[19 de Agosto]
Proseguiram no dia 19 para as Guaritas, distante quatro legoas, continuando o tempo frigidissimo, com vento de nordeste: a estrada é mais habitada do que as antecedentes planicies d'esta provincia do Rio Grande. Nas Guaritas habitava um Major de milicias, casado, que tinha uma excellente casa, feita de tijolo, e coberta de telha. Elle tratou o Coronel com franqueza e cordialidade, e lhe disse ter vindo de Portalegre, n'esta mesma provincia, fazendo alli construir aquella casa á maneira das grandes povoações.

[20 de Agosto]
D'aqui continuaram a marcha no dia 20 ao longo d'um extenso bosque para o sitio do = Capão comprido = a tres legoas de distancia: apesar da jornada ser pequena, a boiada que conduzia o carro do Coronel cançou, e como o mesmo carro se houvesse tombado, deu isto origem a varios prejuizos.
Era o dia 20 d'agosto aquelle em que se celebrava a festa do grande S. Bernardo, Abbade de Claraval. 
Este dia era para o Coronel de saudosas recordações, porque em alguns dos annos anteriores costumava passal-o no mosteiro de Salzedas, pertencente á religião de S. Bernardo, onde os bondosos monges regalavam opiparamente os seus hospedes e amigos. Entre estes se contavam os irmãos Azeredos, que tendo grande parentella na ordem, eram alli sempre recebidos com inexcedivel cordialidade e amizade. Ainda no anno anterior de 1813 lá havia passado este dia, e então era no meio das planicies infindas do novo mundo que a sua renovação o vinha encontrar. Hoje de todas as festas e de todas as gallas com que os monges celebravam a festa do grande Patriarcha, que resta? Apenas o horror da solidão e das ruinas atravez dos dormitorios e claustros abandonados do sumptuoso Mosteiro, onde as vozes em coro entoaram perennemente por seculos os louvores do Deus dos Exercitos, do Deus tres vezes Santo.

[21 de Agosto]
A noite de 20 para 21, e todo este dia se apresentou terrivelmente tempestuoso, sendo comtudo forçoso marchar para ir pernoitar ao == Capão da Figueira =a quatro legoas adiante. 

[22 de Agosto]
Não appareceu melhor o dia 22; a chuva, tendo continuado, tornou a marcha trabalhosa atravez dos campos alagados; assim continuaram por mais quatro legoas até.ao Capão do meio, onde havia uma unica casa, em que vivia uma viuva com tres filhas casadas, e outras tantas solteiras, todas formosas.

[23 de Agosto]
No dia 23, seguindo uma lingoeta de terra entre o mar e a lagoa dos Patos, foram ficar a uma povoação onde havia igreja parochial, denominada o = Estreito = nome que lhe proveio da estreiteza do terreno entre o mar e a lagoa: 
ahi se aquartelou a tropa, que vinha em estado lamentavel, encharcada em agua, e tiritando de frio. O terreno, varejado pelos ventos, está açoriado pelas arêas do mar e da lagoa, que o tornam quasi esteril. A freguezia do Estreito tem dezesete legoas de comprido, e chega quasi ao Rio Grande.

[24 de Agosto]
O tempo não melhorou no dia seguinte (24) festa do Apostolo S. Bartholomeu, em que o batalhão ouviu missa na parochia; finda a qual proseguiu-se na marcha, indo pernoitar a quatro legoas adiante, no sitio do Miguelito, nome derivado d'um primeiro habitador, chamado Miguel, cuja mulher ainda então vivia já velhissima.

[25 de Agosto]
Duas legoas ao sul está a povoação do norte, assim chamada, por estar ao norte da villa de S. Pedro do Rio Grande do Sul; e para a dita povoação seguiu o batalhão no dia 25. E' ella bonita, com coisa de setenta casas, e feitas como as da Europa, com telhado, vidraças, e paredes caiadas, e por dentro grande asseio: mas estando edificada sobre um areal tem sido invadida pelas arêas. A tropa aquartelouse na povoação, o que muito precisava, porque as continuas chuvas tinham-na posto em desgraçado estado.
Hospedou-se o Coronel em casa do negociante Antonio de Sá, natural da provincia do Minho, casado e tora filhos, que o tratou com muita affabilidade e excellentes maneiras.
Esta povoação está defronte da villa de S. Pedro do Sul, mettendo-se de permeio a lagoa, a que dão o nome de = Rio Grande.
Tem muito negocio por ser porto de mar, e o rio esrá sempre attestado d'embarcações, que andam no trafico da mercancia. O frio, como já se disse, era intenso, e igual ao que se sente em Portugal no mez de janeiro. Como a tropa precisasse de descanço, no fim de uma marcha de 108 grandes legoas, deliberou o Coronel demorar-se ahi alguns dias.

[26 de Agosto]
A hospitalidade dos seus patrões foi a mais franca e sincera: no dia 26 deram-lhe um baile com brilhante companhia: alli no mundo virgem, entre aquella boa gente, folgava-se á moda portugueza: assim se reuniram as senhoras da povoação, e se dançou até alta madrugada, com uma animação e enthusiasmo frenetico. Alguns corações ficaram feridos de parte a parte; entre os officiaes do batalhão e as meninas da terra estabeleceu-se aquella affinidade que tambem cá no velho mundo se observa. A raça humana é uma e a mesma : as suas tendencias, os seus instinctos, as suas paixões são em toda a parte identicas: que importa que os homens nasçam e vivam debaixo do sol perpendicular da zona tórrida, sob as zonas temperadas, ou que vejetem entre os gêlos das regiões polares; em toda a parte elles são os membros dispersos da grande familia, que só tem uma origem e uma denominação commum. 

[30-31 de Agosto]
A instancias d'esta interessante companhia demorou-se o batalhão alli até ao dia 30, sahindo no dia 31 pelas 7 horas da manhã, com visiveis signaes de saudade dos que iam, e dos que ficavam: e não faltaram desejos e até perigos de tanto os transeuntes como as indigenas, ficarem unidos para sempre: todavia forçoso foi partir. A vida n'este mundo é uma peregrinação continuada até ao termo final: as horas mais doces passam como os sonhos, e parecem mesmo sonhos: só os negros cuidados, as amarguras pungentes que corroem a existencia, e abreviam'o seu termo, deixam caracteres indeleveis sobre a fronte e no espirito.

[CONTINUA]


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Retirado de: AGUILAR, Francisco D’Azeredo Teixeira D’, Apontamentos Biographicos de Francisco de Paula D’Azeredo, Conde de Samodães, Porto, Tip. Manoel José Pereira, 1866. pp. 82-sg